Mensagens

Sobre o que as coisas terríveis nos fazem dentro do peito

Imagem
Falava um dia destes com uma pessoa de coração especial. Falávamos sobre o que as coisas terríveis, as más notícias, nos fazem cá dentro. Sobre a revolução cruel que provocam; o irromper abrupto peito adentro, abrindo uma auto-estrada sem olhar a meios - sem tentar(/conseguir?) evitar a destruição.  Metáforas à parte (até porque não pretendo com esta reflexão entrar em politiquices), esta conversa de coração nas mãos e lágrimas nos olhos fez uma ressonância incrível nestas catacumbas. Não consigo deixar de sentir que as más notícias, para além de muito claramente nos abalarem até ao centro de nós, e abalarem a forma como vemos tudo o que nos rodeia, têm um potencial de transformação incrível.  Não é por acaso que se diz que nos momentos de crise se vê quem somos. Ou quem podemos e queremos vir a ser. Porque com esse espaço que se abre no centro de nós, à força bruta, podemos fazer muita coisa. Até um salão de baile. Já imaginaram um salão de baile no meio do vosso peito? ...

O meu poema

Abandonei a minha casa, o meu peito. Sabe Deus há quanto tempo. Só sei que era ainda catraia. Estava demasiado calor cá dentro. Abandonei tudo e parti em busca de olhar para fora. E assim tem sido esta viagem, longa como o transiberiano - por vezes igualmente árida -, colada à janela, agarrada ao bilhete com as unhas. Com medo. Medo de perder a minha estação. Medo de não ver tudo o que haja para ver de bonito. Medo de tirar o lugar a alguém que precise mais do que eu. Fui também dedicando cada vez mais a viagem a trabalhar. Para os outros. A servi-los, a tentar antecipar-lhes a sede e as vontades, a trazer aquela almofada extra que nem sabiam que precisavam. À custa de me voltar para fora, mantive-me ocupada. Mas isso já não chega. Continua calor cá dentro. E eis que recebo o telegrama a dizer que tenho de voltar para casa. A minha casa está a arder. E só eu posso combater esse fogo. Voltar para casa quando já nem sequer sei o caminho de cor, para lutar uma batalha que não sinto ser mi...

Foi uma fotografia

Exactamente há dois anos atrás, tiravas-nos uma fotografia. Na exacta noite em que nos conhecemos. Ergueste o braço comprido por cima do grupo e com um gesto relaxado eternizaste o primeiro momento de muitos que se seguiram. Olho para a imagem e ela fala comigo. Sorrio, transportada para o calor nos sorrisos, a energia da noite de arraial, a força dos elementos que se alinharam. Sou recordada de que dos acasos nascem tantas vezes pirilampos. Que da espontaneidade se geram coisas que um dia talvez venham a ser centrais na nossa vida. Ainda que tenham começado num só gesto. Sou levada a sentir que se tanto na vida se resume a respirar fundo e ir. De nos permitirmos ser levados pela mão por uma amiga a conhecer pessoas novas, num arraial de Santo António. De correr o risco de olhar. De sentir. Passam dois anos e sinto que só tive tempo de inspirar fundo e expirar. Passam dois anos e sinto os pirilampos, as borboletas e as luzes quentes do arraial. Tudo no meu peito, a arrulhar...

Segurem-se. O corpo respira, bate e continua.

Imagem
Em dias cinzentos, é mais difícil distinguir a linha do horizonte. Sabem? Como naquele dia em que nos dá na cabeça pegar no carro e conduzir em direcção ao mar, porque queremos mesmo ver o sol a pôr-se no mar? E quando lá chegamos as nuvens estão a aconchegar-se na linha do horizonte, a dizer-nos sem palavras que não vamos ter acesso ao espectáculo porque os bilhetes, digamos, esgotaram. É como se fosse isto, dia após dia. O corpo e a cabeça uniram-se em esforço, mas a meteorologia tem a palavra final. E a energia parece ir-se esvaindo, para voltar a pegar no carro, porque a esperança, o propósito, estão nublados. Nestes dias - que ultimamente têm sido muitos - temos várias opções. Aqui ficam algumas das minhas. Spoiler alert: vale o que vale. Não vieram parar a um blog de receitas! Podemos falar com a criança dentro de nós, que está cheia de medo. Com razão. (até porque a vida continua. os problemas que já existiam continuam lá. só temos mais.) Podemos ter medo de estarmos ...

Dar um momento ao coração

Imagem
[Estávamos dormentes. E de repente não sabemos o que vem depois de nós. Nem sequer durante.] De repente o mundo agiganta-se e cresce-se-lhe o peito na nossa direcção. De repente ele está zangado. Não - ele já estava zangado. Nós é que não vimos. Não achámos que fosse nada de sério. Uma birra, quisemos achar. Já lhe passa. De repente, é urgente parar. Mas que enorme contrasenso numa só frase! Nem me dou conta de que tenho os bolsos cheios. De trocos para o café. De mensagens às quais não respondi. De beijos, de abraços, de tempo, de escolhas. Sento-me, tentando pintar um daqueles livros para colorir para os adultos que estão a tentar reaprender a estar no aqui e no agora. Escolho o desenho que mais me diz algo, ainda em branco. Vou repescar lápis antigos numa gaveta perdida, reeduco a mão para o papel. Mas até os lápis me parecem gastos, a cor cansada mastiga o papel - marca-o, em vez de o pintar. De forma semelhante, agora que penso nisso, às noites de sono nas minhas...

Será que é assim que se sentem os peixes em Veneza?

Como diz Daniel Sampaio, não é fácil resistir à melancolia de olhar pela janela e ver o mundo lá fora. Mas a epidemia vai passar. O carácter temporário é talvez o mais importante, psicologicamente. Por mais assustadoras, imprevisíveis e incontroláveis que nos pareçam as circunstâncias actuais, também elas irão mudar. Talvez não de um “clique”, como gostaríamos, mas a seu tempo. E o que custa, respeitar o tempo do que não é nosso? Especialmente quando o nosso espaço é invadido, as nossas rotinas corrompidas. Mas de todo este mal, de toda esta dor e mudanças, pode advir também um bem maior. Maior do que nós, maior do que o medo e tantos padrões podres que estavam instaurados. Somos forçados a parar, a abrir os olhos e a escutar. E nesta breve paragem, já ouvimos a Terra a respirar fundo.  Na China (e não só), os níveis de poluição foram reduzidos em toneladas com vários zeros atrás de si.  Os canais de Veneza recuperam a sua cor; os peixes atrevem-se...

Um Quebra-nozes, para quebrar a tempestade.

Imagem
Esta quinta-feira, apesar das cautelas lançadas em torno da Elsa (a tempestade, não a princesa!), fui ver o Quebra-Nozes. Fui com uma amiga com quem partilho a paixão da dança - conhecemo-nos, aliás, quando nos iniciámos nas lides da dança contemporânea, há uns oito anos atrás. E apesar dos mais de dez anos que nos separam, encontrámos um espaço comum muito engraçado, onde partilhamos este e outros interesses comuns - como os livros, a escrita e as filosofias de vida. Fomos ver a produção portuguesa criada pela Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões, em Lisboa. Sem grandes preâmbulos na escolha, até porque, como dizia a minha amiga, em podendo escolher, há que beneficiar a produção nacional (quando é boa, naturalmente, como é o caso). Todos os procedimentos em torno do (aparentemente!) simples acto de chegar ao teatro se revelaram, desde logo, uma aventura! Estávamos em alerta amarelo; as estradas cheias de pessoas ansiosas por chegarem a casa e ligeiramente encadeadas pelo...