Dar um momento ao coração

[Estávamos dormentes. E de repente não sabemos o que vem depois de nós. Nem sequer durante.]


De repente o mundo agiganta-se e cresce-se-lhe o peito na nossa direcção. De repente ele está zangado. Não - ele já estava zangado. Nós é que não vimos. Não achámos que fosse nada de sério. Uma birra, quisemos achar. Já lhe passa.
De repente, é urgente parar. Mas que enorme contrasenso numa só frase! Nem me dou conta de que tenho os bolsos cheios. De trocos para o café. De mensagens às quais não respondi. De beijos, de abraços, de tempo, de escolhas.
Sento-me, tentando pintar um daqueles livros para colorir para os adultos que estão a tentar reaprender a estar no aqui e no agora. Escolho o desenho que mais me diz algo, ainda em branco. Vou repescar lápis antigos numa gaveta perdida, reeduco a mão para o papel. Mas até os lápis me parecem gastos, a cor cansada mastiga o papel - marca-o, em vez de o pintar. De forma semelhante, agora que penso nisso, às noites de sono nas minhas rugas.

De coisas nas quais nem reparei. Às vezes dou por mim a queimar janelas.

***

Um dia destes falava com uma colega de profissão e amiga sobre isto. Reflectíamos sobre estes tempos de guerra.

Um dos grandes desafios é o de darmos por nós aborrecidos connosco próprios, dizia-lhe eu. A fazermos ainda menos do que fazíamos antes. E a deixarmo-nos contaminar por essa nostalgia, por esse ócio.
Ela alegou então que olhamos para este tempo de quarentena com um olhar duro. Colocamos em nós a expectativa de fazer tudo o que estávamos sempre a dizer que queríamos fazer, mas que não tínhamos tempo. Porque estamos em casa. Devemos. Temos que.
Errado.

Não estamos de férias, recordava a minha amiga.

O mundo está louco lá fora. Temos de nos adaptar a uma realidade completamente diferente.
E mais, acrescentava ela: temos que nos defender de um inimigo invisível. Porque olhamos pela janela e parece-nos tudo igual. Talvez vejamos menos pessoas. Mas não há bombardeamentos, coisas a irem pelos ares - não há nada a recordar-nos de que isto é uma guerra. Já para não mencionar a energia extra que gastamos a tentar prever e entender esse inimigo invisível, que não dá mostras de se aproximar e que no entanto pode estar no molho das chaves, no ar, no nosso café favorito, até naquele abraço que era como um pão quente.

Por isso, façamos o que queremos. Façamos o que podemos, sem lhe pôr mais peso. Respiremos. Não estamos de férias.

Depois do pior, vem o mundo e regenera-se. Com ele também nós, lentamente. E assim nos vamos aproximando, sem dar pela coisa, do dia em que o abraço volta a ser como um pão quente, sem medo.

Faça-se uma lista de pequenos desejos, para que o sol não se perca de vista.
(Em inglês: a grounding bucket list in times of chaos)

[só alguns dos meus]

- Pendurar uma fotografia de um elefante livre, tirada por mim bem de perto, a recordar-me as emoções do momento que vivi no meio deles

- Regressar ao Louvre para descobrir, com todo o tempo do mundo, qual foi o quadro que me fez ficar parada a admirá-lo, quando lá fui em pequena

- Fazer o triângulo Nepal, Tibete e Butão. Em homenagem ao meu pai, que partilhava este sonho (esperançosamente, reunir-me com ele num mosteiro budista bem longe daqui)

- Ir a pé ver o pôr do sol no mar. Porque sim

- Abrir a nossa melhor garrafa de vinho

- Montar o leitor de vinil no quarto dele/dela

[Querem partilhar um dos vossos comigo? Vá lá. Dêem um momento ao vosso coração]

Imagem: Sebastião Salgado

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