Será que é assim que se sentem os peixes em Veneza?

Como diz Daniel Sampaio, não é fácil resistir à melancolia de olhar pela janela e ver o mundo lá fora. Mas a epidemia vai passar.

O carácter temporário é talvez o mais importante, psicologicamente. Por mais assustadoras, imprevisíveis e incontroláveis que nos pareçam as circunstâncias actuais, também elas irão mudar. Talvez não de um “clique”, como gostaríamos, mas a seu tempo.

E o que custa, respeitar o tempo do que não é nosso?
Especialmente quando o nosso espaço é invadido, as nossas rotinas corrompidas.

Mas de todo este mal, de toda esta dor e mudanças, pode advir também um bem maior. Maior do que nós, maior do que o medo e tantos padrões podres que estavam instaurados.

Somos forçados a parar, a abrir os olhos e a escutar.
E nesta breve paragem, já ouvimos a Terra a respirar fundo. 

Na China (e não só), os níveis de poluição foram reduzidos em toneladas com vários zeros atrás de si. 

Os canais de Veneza recuperam a sua cor; os peixes atrevem-se a voltar, como se aquela pudesse ser de novo a sua casa, que lhes foi arrancada pelo turismo cego, pelos veículos económicos. 

Arrancada por nós, seres humanos. E não apenas pelos que exploram barquetas à beira da cidade, fazendo disso vida. Mas também todos os outros - nós, comodamente (e agora obrigatoriamente) sentados no sofá a fazer “scroll” nos telefones, à procura do voo mais barato e do destino mais popular. Sem que por um segundo, na equação dessa decisão, pese a vida dos peixes, a cor da água. A poluição no ar.
Há quanto tempo não se falava tanto em comunidade? 
Há quanto tempo, leitor sentado no sofá, não pensava tanto no impacto que os seus pequenos gestos têm nos outros?

E há quanto tempo não nos ardia a pele com saudades de algo tão simples como um beijo na testa, um abraço aos nossos pais?

Podemos deixar-nos ir na urgência dos dias. Há de facto muito que não controlamos, é isso é assustador.
Mas também podemos aproveitar que o comboio parou, e olhar à volta.
Estávamos a viver do essencial? E o que é isso do essencial, para nós?
Que tipo de coisas tínhamos esquecido?
Precisamos mesmo de tudo o que buscamos incansavelmente? E que impacto tem isso nos outros? No mundo?

Pode ser tempo para nos fazermos algumas perguntas. Para nos sentarmos com os nossos umbigos e termos uma conversa séria. E de reflectirmos (e escrever, se for preciso, para não esquecer) sobre o que tudo isto diz de nós, deste momento no mundo, na nossa comunidade, na nossa casa.

As coisas não voltarão ao que eram. Sobretudo não em breve. Mas podem, em alguns aspectos, vir a ser melhores. Se pelo menos durante algum tempo, formos capazes de reparar.

O segredo está naquele beijo que agora nos faz tanta falta. Naquela esplanada com os amigos, sem pensar (meio Portugal suspira). Nos nossos miúdos a correrem no meio de outros, felizes, unidos, livres. Correndo a abraçar-se impensadamente aos nossos pais, a seguir a nós. Sem ser preciso reparar na ordem. De poder agarrar na mala e sair porta fora para ir buscar pão, ver uma peca de teatro ou beber café. Sem medo. Cada um no espaço que é seu, e ao mesmo tempo no de todos. Sem termos de pensar em cada gesto nem desinfectá-lo.

Será que é assim que se sentem os peixes em Veneza? 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aluga-se cantinho onde poder chorar

Longe do mundo... mas perto de ti!

E hoje é só.