O meu poema

Abandonei a minha casa, o meu peito. Sabe Deus há quanto tempo. Só sei que era ainda catraia. Estava demasiado calor cá dentro.

Abandonei tudo e parti em busca de olhar para fora. E assim tem sido esta viagem, longa como o transiberiano - por vezes igualmente árida -, colada à janela, agarrada ao bilhete com as unhas. Com medo. Medo de perder a minha estação. Medo de não ver tudo o que haja para ver de bonito. Medo de tirar o lugar a alguém que precise mais do que eu.

Fui também dedicando cada vez mais a viagem a trabalhar. Para os outros. A servi-los, a tentar antecipar-lhes a sede e as vontades, a trazer aquela almofada extra que nem sabiam que precisavam.

À custa de me voltar para fora, mantive-me ocupada. Mas isso já não chega.

Continua calor cá dentro.

E eis que recebo o telegrama a dizer que tenho de voltar para casa. A minha casa está a arder. E só eu posso combater esse fogo.


Voltar para casa quando já nem sequer sei o caminho de cor, para lutar uma batalha que não sinto ser minha (embora seja) depois de uma vida de trabalho. Estão a sentir a chama a acariciar-vos o queixo?


Dou por mim a morder o lábio, a morder o fumo que sai pelas janelas, a querer arder com os móveis só para poder sentar-me por um minuto.

Mas não pode ser.


Ao fundo do caminho, ouvem-se os passos arruaceiros dos infames e populares “ses ”.


E se ao menos eu tivesse aproveitado a viagem de outra forma. Tive tantas oportunidades para me sentar, vejo agora. Desperdicei tanta energia em pedidos que existiam só na minha cabeça. Desviei tantas vezes o olhar da vista, que podia beijar-me nos lábios e dizer-me que estava tudo bem.

E não achei importante vir a casa de vez em quando. Para limpar a casa, para me sentar em silêncio comigo e para ir crescendo com ela. Num processo de respeito mútuo.


Agora também não é hora para contemplações. O fumo arde nos olhos e deixa-me zangada. Muito zangada.


Vim só pedir um favor, antes de voltar para dentro.

Guardem-me um lugar - à janela, se puderem. Quando eu conseguir combater este fogo com os dentes e limpar a casa, serei outra pessoa. E essa pessoa vai perder menos oportunidades de se sentar a desfrutar do caminho. Bem como, a espaços, de se permitir voltar a casa para gozar do seu templo.

Devagarinho vou escrevendo o meu poema. Para mim mesma. Para me sentar ao meu colo, para me dizer ao meu ouvido e para me fazer sorrir. 

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