Segurem-se. O corpo respira, bate e continua.

Em dias cinzentos, é mais difícil distinguir a linha do horizonte.
Sabem? Como naquele dia em que nos dá na cabeça pegar no carro e conduzir em direcção ao mar, porque queremos mesmo ver o sol a pôr-se no mar? E quando lá chegamos as nuvens estão a aconchegar-se na linha do horizonte, a dizer-nos sem palavras que não vamos ter acesso ao espectáculo porque os bilhetes, digamos, esgotaram.
É como se fosse isto, dia após dia. O corpo e a cabeça uniram-se em esforço, mas a meteorologia tem a palavra final. E a energia parece ir-se esvaindo, para voltar a pegar no carro, porque a esperança, o propósito, estão nublados.
Nestes dias - que ultimamente têm sido muitos - temos várias opções. Aqui ficam algumas das minhas. Spoiler alert: vale o que vale. Não vieram parar a um blog de receitas!

Podemos falar com a criança dentro de nós, que está cheia de medo. Com razão.

(até porque a vida continua. os problemas que já existiam continuam lá. só temos mais.)
Podemos ter medo de estarmos a deixar-nos carcomer pelo caruncho da frustração. Ter medo de cair pelo buraco do coelho adentro (sendo que não somos Alices; temos mais que fazer).

Mas a realidade é que existe uma criança assustada em todos nós. Que não sabe bem o que se passa. Que se calhar não sabe ainda porque chora, sequer. E se estivessem numa sala com um bebé a chorar, o que fariam? Iam aspirar a sala, ignorando? Faziam de conta que não ouviam? Diziam-lhe para "não ser mariquinhas"?
Ou será que o instinto seria atravessar a sala e confortar esse bebé, essa criança?
Então porque não fazer o mesmo convosco próprios?

Da mesma forma, será muito difícil conseguir que a criança nos dê a mão e confie em nós, quando lhe dizemos que vai ficar tudo bem, se não formos capazes de a acalmar e ajudar a confiar em nós primeiro. O mesmo se passa aqui dentro.
Às vezes precisamos de permitir-nos instantes de consolo, de colo - seja qual for o aspecto que isso tenha para cada um de nós. E nem sempre o bebé se acalma à primeira tentativa. É preciso paciência. E bom ouvido.
Neste gesto, estamos a relembrar-nos de que somos humanos, e não super-heróis. O desafio aqui poderá ser dosear a coisa, de forma a não cair para dentro da toca do tal roedor. Talvez seja importante que seja um processo consciente. Que decidamos que iremos dar-nos este espaço. Que conversemos connosco, num espaço de compaixão, e não de crítica.
Nesta conversa connosco, podemos acordar quanto tempo iremos ficar aqui, qual é o objectivo, e o que vem a seguir.
Poderia soar algo como "Ok, hoje vou deixar-me ficar de pijama, comer cereais e ler todo o dia. Mas amanhã tomo um duche, visto as calças que melhor abonam os meus atributos, visto a máscara das flores e vou buscar pão pela manhã. Porque é isto que eu preciso, e é isto que eu quero").

E podemos olhar para as coisas pequenas, porque às vezes faz falta. Atenta nisto, coração.

Inspiro fundo. E neste gesto, reparo nos pulmões limpos. Sem dor, sem desconforto. Saudáveis.
Estico os braços e espreguiço-me, porque quero. Porque posso. Reparo nas rugas dos nós dos dedos. Faço uma festa no meu pé. Já me disseram que tenho uns pés bonitos, e é verdade.
Posso pôr a mão no peito e sentir o coração a bater. Recordar-me do trabalho que o meu corpo tem, a cada segundo que passa, para me manter viva e a funcionar. Sem que eu tenha de fazer nada.
Olho em volta e reparo. Na casa segura, no espaço que me contém, no amor que me sustenta. Nas formas que tenho de me abraçar - comendo de forma saudável; fazendo uma caminhada; lendo; ouvindo música; fazendo uma surpresa àquele amigo, à distância; confortando alguém.
Comigo resulta também ir para a terra, plantar, criar e nutrir; resulta escrever, meditar. Resulta sorrir quando o sol me bate na cara, parar para reparar na cor daquela flor que brotou hoje. Preciso de momentos sem pensar, mas também preciso de momentos em que me centro em mim, em que alinho as asas. Presente no aqui e no agora, que não me afogue em preocupações. Trata-se não de negar, mas de aceitar e pegar na realidade em pedaços comportáveis.

Há abraços que pude continuar a dar - e que abençoada que sou por isso! Não são a totalidade dos abraços que quero dar, é certo. Mas encontro-me num momento - posso não saber quanto irá durar, mas sei que é temporário. E sei que quando puder voltar a abrir os braços, irei vingar-me com gargalhadas e lágrimas todas misturadas num rebuliço.
[quero também acrescentar que, ainda antes de começar este ano, já a vida me tinha tirado outros abraços. esses, para todo o sempre. pelo que, como podem imaginar, este não foi sequer o pior ano da minha vida, embora esteja a esforçar-se. ainda assim, antes disso acumulei uma bolha de abraços e de amor que me alimentam, que me alimentarão para sempre. que me recordam que sou filha de boa gente, e que carrego isso comigo nos meus gestos. há muitos abraços por distribuir. ensinaram-me bem.]
Tenho tanta sorte que, por vezes, continuo a adormecer em braços que me fazem sentir segura. Que verdadeiramente me seguram, de tal forma que a sua energia fica em mim, mesmo depois de partirem.
Alguns de nós não têm isto, neste momento. Mas quando me adormeço a mim, recordo-me mais uma vez: sou capaz de me manter segura - tal como o meu corpo, que respira e bate e continua por mim. E se a cabeça não quer parar, eu tento que ela oiça o bater do coração, a respiração e o aperto das minhas mãos no peito, a aconchegá-lo. Tento voltar ao instante que é o aqui e o agora, e alimentar-me do calor dos lençóis, da textura macia da almofada e do consolo do ciclo que se repete, de um sol que se segue a uma lua, aconteça o que acontecer (e ainda que eu nem sempre consiga vê-los, ou entender).

E se nada disto funcionar, talvez haja uma música, um livro ou um doce para o bebé que chora cá dentro. E amanhã tentamos outra vez. Porque um dia destes, o sol há de estar à nossa espera na linha do horizonte. Mas até lá, ele vai aparecendo para nos visitar à janela.

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