Um Quebra-nozes, para quebrar a tempestade.

Esta quinta-feira, apesar das cautelas lançadas em torno da Elsa (a tempestade, não a princesa!), fui ver o Quebra-Nozes.
Fui com uma amiga com quem partilho a paixão da dança - conhecemo-nos, aliás, quando nos iniciámos nas lides da dança contemporânea, há uns oito anos atrás. E apesar dos mais de dez anos que nos separam, encontrámos um espaço comum muito engraçado, onde partilhamos este e outros interesses comuns - como os livros, a escrita e as filosofias de vida. Fomos ver a produção portuguesa criada pela Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões, em Lisboa. Sem grandes preâmbulos na escolha, até porque, como dizia a minha amiga, em podendo escolher, há que beneficiar a produção nacional (quando é boa, naturalmente, como é o caso).

Todos os procedimentos em torno do (aparentemente!) simples acto de chegar ao teatro se revelaram, desde logo, uma aventura! Estávamos em alerta amarelo; as estradas cheias de pessoas ansiosas por chegarem a casa e ligeiramente encadeadas pelo medo (metade disso, metade da excitação própria do consumismo natalício). A adicionar às dezenas de acidentes que se faziam anunciar em notícias e aplicações de apoio à navegação, a chuva e o vento não davam tréguas a quem quisesse tentar a sua sorte andando e usando transportes. Como foi o caso da minha amiga C., que menos de um minuto depois de sair do metro aventurando-se a chegar ao Teatro a pé (desejava ela), me ligava em desespero, anunciando que a sua roupa estava encharcada dos joelhos para baixo, e incitando-me a que a apanhasse na estação do Oriente; caso contrário, só lá chegaria de barco, e com sorte nas correntes!

Assim fiz, tendo arrancado de Oeiras às oito horas da noite, com uma visibilidade incrivelmente reduzida, sem jantar e com a companhia de lençóis de água, rajadas de vento e chuva torrencial ao longo de todo o caminho. Ainda assim, apanhei a minha amiga e conseguimos chegar a horas, com um enorme golpe de sorte no momento do estacionamento, que nos permitiu complementar o restante percurso com uma breve corrida.
Recompondo-nos brevemente, dentro do possível para um dia de tempestade, lá erguemos a cabeça e caminhámos até aos lugares mais acessíveis do Teatro (que não obstante, são muito simpáticos).

Assim que nos sentámos, chamou-me a atenção o lindíssimo pano que decorava o palco, prometendo silenciosamente um espectáculo de arregalar o olho. Parecia (na minha imaginação cheia de sede) a gravura pintada à mão da base de uma árvore centenária, gigante, cujas rugosidades e pormenores pareciam saltar do pano, pedindo para ser abraçadas, naquele azul cor do céu de que são feitos os nossos sonhos. A acompanhar o dorso desta árvore mágica, estava a Orquestra Sinfónica de Lisboa, convidando-nos a sentirmo-nos parte do cenário. Como se estivéssemos em casa. E como se em casa tivéssemos uma orquestra sinfónica a tocar só para nós. A emoção aumenta.

O espectáculo a que assisti seria difícil de descrever. De tão intrincado.

Trata-se de uma menina que sonha. Numa noite de Natal, depois de receber como prenda um quebra-nozes, retorna à sala para ver o seu querido quebra-nozes ganhar vida e formas de pessoa, pelas mãos da Fada do Açúcar, para dançar com ela; para lutar contra o Rei dos Ratos (afinal, não é para isto que todos ganhamos vida? Para dançarmos e para lutarmos contra os nossos demónios?). Tudo o que se passa a seguir parece deixar a Clara (e com ela os espectadores) no deslumbre da questão: estarei a sonhar, ou estará tudo isto a acontecer realmente à minha frente? Viaja por vários países, bebe deles; bebe, na realidade, de cenários por ela imaginados e sonhados.

Tenho de confessar. Adorei a menina principal, a que fazia de jovem Clara. Fiquei sem fôlego com a sua leveza, a sua graciosidade, a inocência que transpirava. A simplicidade, e com ela a magia.
Gostei também muito do quadro do Pas de Deux, um momento crucial do espectáculo, em que o jovem casal mostra os seus dotes e a sua ligação, e em que se sente o público a suster a respiração. O momento do solo da bailarina, que faz parte do nosso imaginário e das nossas caixinhas de música. Intemporal.

Os cenários eram deslumbrantes. Mas mesmo que não o fossem, os bailarinos (e através deles o coreógrafo) teriam sido igualmente fascinantes.

Tive arrepios; e quando sentimos arrepios num espectáculo, sabemos que a arte chegou à camada de nós onde está guardada a alma.
Lembro-me de ver o quadro da luta com a Trupe dos ratos e pensar: caramba, se eu viesse para ver um dos bailarinos-rato, ficaria triste de não lhe poder ver a cara, e no final elogiar-lhe francamente a prestação. Afinal, não é possível distingui-los.

Com este pensamento, ocorreu-me outro em seguida. Um mais pessoal. O de que, se algum dia tivesse feito parte de um espectáculo como este, sei de uma pessoa que teria estado na plateia para me aplaudir com todo o entusiasmo e orgulho do mundo, seguramente em mais do que uma ocasião (possivelmente em todas). Mesmo que eu fosse um Rato.

Foi um pensamento que me fez chorar. De gratidão.

E com isto, saímos para enfrentar a Elsa. De peito cheio.

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