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Poema sobre a curva do meu pescoço

Já vi coisas boas a perderem-se Tantas vezes Que por vezes não consigo evitar Ainda que a espaços O medo Mas depois É na curva do meu pescoço Que tu páras para descansar Como quem se senta ao balcão do seu bar preferido O nariz à procura de se fundir na pele Estacionas como quem diz Tudo bem por aqui Neste cantinho à beira-mar plantado E lá segues tu Como passarinho assobiando por entre os telhados Alheio aos gatos E às pestes que costumam tirar-te o sono A espera cansa E a solidão, em alguns dias Queima Mas depois vem a cadência Do teu respirar consolado e quente A contornar a curva do meu pescoço Às vezes, até há um beijo arrepiado E desse lugar parte um som Espera, já sei (vais achar que é mariquice) Mas há, num eco provocado pelo tempo O som do destrancar de uma fechadura A cada vez que me procuras e ali adormeces Adormeces como quem está no seu lugar E eu Sem perceber bem como, nem porquê Abandono-me ao sono contigo E creio Na esperança dos crentes No optimismo dos que fazem conta...

As viagens deste último ano

No último ano, por ocasião do óbvio, tive tempo extra para dar a volta ao castanho redondo dos teus olhos. Por todos os dias que vieram antes desses, em que a pressa, a vida (e às vezes até tu!) me diziam que haviam coisas mais importantes, mais urgentes, mais divertidas para fazer. E agora, porque fomos despidos de tantas dessas coisas (que nos pareciam já tão mundanas e afinal eram essenciais) damos por nós, quais miúdos habituados aos ecrãs, a olhar para um quarto vazio e dois paus no chão, a pensar o que podemos fazer. Uma das minhas formas de lidar com isso: olho à volta no quarto e numero coisas. Conto as minhas bênçãos.  Uma delas, aquela que muitas vezes me ajuda a adormecer: órbitas em torno desses olhos quentes. Do teu olhar-abraço. Um olhar com cheiro. Um cheiro que me diz: confia. E sim, ao longo deste último ano os teus olhos estão diferentes. Costumavam estar brilhantes e cheios de céu, enquanto nos empurrávamos verde adentro de mochila às costas, ou quando só parávam...

Sobre o que as coisas terríveis nos fazem dentro do peito

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Falava um dia destes com uma pessoa de coração especial. Falávamos sobre o que as coisas terríveis, as más notícias, nos fazem cá dentro. Sobre a revolução cruel que provocam; o irromper abrupto peito adentro, abrindo uma auto-estrada sem olhar a meios - sem tentar(/conseguir?) evitar a destruição.  Metáforas à parte (até porque não pretendo com esta reflexão entrar em politiquices), esta conversa de coração nas mãos e lágrimas nos olhos fez uma ressonância incrível nestas catacumbas. Não consigo deixar de sentir que as más notícias, para além de muito claramente nos abalarem até ao centro de nós, e abalarem a forma como vemos tudo o que nos rodeia, têm um potencial de transformação incrível.  Não é por acaso que se diz que nos momentos de crise se vê quem somos. Ou quem podemos e queremos vir a ser. Porque com esse espaço que se abre no centro de nós, à força bruta, podemos fazer muita coisa. Até um salão de baile. Já imaginaram um salão de baile no meio do vosso peito? ...

O meu poema

Abandonei a minha casa, o meu peito. Sabe Deus há quanto tempo. Só sei que era ainda catraia. Estava demasiado calor cá dentro. Abandonei tudo e parti em busca de olhar para fora. E assim tem sido esta viagem, longa como o transiberiano - por vezes igualmente árida -, colada à janela, agarrada ao bilhete com as unhas. Com medo. Medo de perder a minha estação. Medo de não ver tudo o que haja para ver de bonito. Medo de tirar o lugar a alguém que precise mais do que eu. Fui também dedicando cada vez mais a viagem a trabalhar. Para os outros. A servi-los, a tentar antecipar-lhes a sede e as vontades, a trazer aquela almofada extra que nem sabiam que precisavam. À custa de me voltar para fora, mantive-me ocupada. Mas isso já não chega. Continua calor cá dentro. E eis que recebo o telegrama a dizer que tenho de voltar para casa. A minha casa está a arder. E só eu posso combater esse fogo. Voltar para casa quando já nem sequer sei o caminho de cor, para lutar uma batalha que não sinto ser mi...

Foi uma fotografia

Exactamente há dois anos atrás, tiravas-nos uma fotografia. Na exacta noite em que nos conhecemos. Ergueste o braço comprido por cima do grupo e com um gesto relaxado eternizaste o primeiro momento de muitos que se seguiram. Olho para a imagem e ela fala comigo. Sorrio, transportada para o calor nos sorrisos, a energia da noite de arraial, a força dos elementos que se alinharam. Sou recordada de que dos acasos nascem tantas vezes pirilampos. Que da espontaneidade se geram coisas que um dia talvez venham a ser centrais na nossa vida. Ainda que tenham começado num só gesto. Sou levada a sentir que se tanto na vida se resume a respirar fundo e ir. De nos permitirmos ser levados pela mão por uma amiga a conhecer pessoas novas, num arraial de Santo António. De correr o risco de olhar. De sentir. Passam dois anos e sinto que só tive tempo de inspirar fundo e expirar. Passam dois anos e sinto os pirilampos, as borboletas e as luzes quentes do arraial. Tudo no meu peito, a arrulhar...

Segurem-se. O corpo respira, bate e continua.

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Em dias cinzentos, é mais difícil distinguir a linha do horizonte. Sabem? Como naquele dia em que nos dá na cabeça pegar no carro e conduzir em direcção ao mar, porque queremos mesmo ver o sol a pôr-se no mar? E quando lá chegamos as nuvens estão a aconchegar-se na linha do horizonte, a dizer-nos sem palavras que não vamos ter acesso ao espectáculo porque os bilhetes, digamos, esgotaram. É como se fosse isto, dia após dia. O corpo e a cabeça uniram-se em esforço, mas a meteorologia tem a palavra final. E a energia parece ir-se esvaindo, para voltar a pegar no carro, porque a esperança, o propósito, estão nublados. Nestes dias - que ultimamente têm sido muitos - temos várias opções. Aqui ficam algumas das minhas. Spoiler alert: vale o que vale. Não vieram parar a um blog de receitas! Podemos falar com a criança dentro de nós, que está cheia de medo. Com razão. (até porque a vida continua. os problemas que já existiam continuam lá. só temos mais.) Podemos ter medo de estarmos ...

Dar um momento ao coração

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[Estávamos dormentes. E de repente não sabemos o que vem depois de nós. Nem sequer durante.] De repente o mundo agiganta-se e cresce-se-lhe o peito na nossa direcção. De repente ele está zangado. Não - ele já estava zangado. Nós é que não vimos. Não achámos que fosse nada de sério. Uma birra, quisemos achar. Já lhe passa. De repente, é urgente parar. Mas que enorme contrasenso numa só frase! Nem me dou conta de que tenho os bolsos cheios. De trocos para o café. De mensagens às quais não respondi. De beijos, de abraços, de tempo, de escolhas. Sento-me, tentando pintar um daqueles livros para colorir para os adultos que estão a tentar reaprender a estar no aqui e no agora. Escolho o desenho que mais me diz algo, ainda em branco. Vou repescar lápis antigos numa gaveta perdida, reeduco a mão para o papel. Mas até os lápis me parecem gastos, a cor cansada mastiga o papel - marca-o, em vez de o pintar. De forma semelhante, agora que penso nisso, às noites de sono nas minhas...