As viagens deste último ano

No último ano, por ocasião do óbvio, tive tempo extra para dar a volta ao castanho redondo dos teus olhos. Por todos os dias que vieram antes desses, em que a pressa, a vida (e às vezes até tu!) me diziam que haviam coisas mais importantes, mais urgentes, mais divertidas para fazer.

E agora, porque fomos despidos de tantas dessas coisas (que nos pareciam já tão mundanas e afinal eram essenciais) damos por nós, quais miúdos habituados aos ecrãs, a olhar para um quarto vazio e dois paus no chão, a pensar o que podemos fazer. Uma das minhas formas de lidar com isso: olho à volta no quarto e numero coisas. Conto as minhas bênçãos. 

Uma delas, aquela que muitas vezes me ajuda a adormecer: órbitas em torno desses olhos quentes. Do teu olhar-abraço. Um olhar com cheiro. Um cheiro que me diz: confia.

E sim, ao longo deste último ano os teus olhos estão diferentes. Costumavam estar brilhantes e cheios de céu, enquanto nos empurrávamos verde adentro de mochila às costas, ou quando só parávamos no sofá, por instantes, para recuperar energias e planear a próxima aventura. 
E agora esses olhos andam mais baços. Mais desocupados e distraídos. Mais preguiçosos, porque tem de ser. 

Mas és tu que estás aí debaixo. E quem, como eu, com tempo em mãos, se permitir reparar, irá ver a tua chama intacta, ao mesmo tempo delicada, atrevida e firme, a latejar-te no castanho dos olhos. Mesmo quando o cansaço da espera se instala. Mesmo quando o aborrecimento te fecha os olhos e te leva a desistir enroscando-te no sofá, eu continuo a sentir-te a chama, como motor quente, quando procuro um canto em ti. Aqueces-me a mão como se a aproximasse de uma fogueira enquanto, no nosso extremoso silêncio, calcorreio os contornos do teu rosto e perco os dedos no teu cabelo. Talvez devesse aborrecer-me. Afinal, tem sido amargo. E no entanto, mergulho na languidez do sofá e levo um sorriso. Porque ali continuo a experimentar a paz que nos perseguia quando íamos em busca do mar para nos acalmar, do verde para nos desafiar, do cinzento para nos ensinar. Já adivinhaste o que é que existe em comum?

Exactamente. O castanho.


(Mais tarde, acordo de noite e fico a pensar. Nesta maldita pandemia, nos planos em pausa, nos avanços que não se dão, nos encontros e abraços adiados. Mas quando estás ao meu lado na cama, és âncora. Seguras-me e devolves-me ao sono, sem nunca deixares de estar adormecido. Fazes isso com o teu corpo que dorme ao meu lado, recordando-me que sou segura. Que sou apertada com uma mão firme. Mesmo quando não estás, levas-me a viajar. Até podermos viajar outra vez).

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