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[Fica. Eu não lhe conto. Prometo.]

Hoje impunha-se escrever. Impunha-se admitir que o silêncio anda a queimar-me. Queimam-me as fotografias de todos os dias que não são hoje; dói-me o meu sorriso nelas. Esse sorriso cheirava quase sempre a ti. As fotografias de hoje, essas não têm sorriso. Têm rugas de pele que não têm sido esticadas; em suma, pele que tem ficado por agarrar. Ao espelho vejo só uma sombra desmaquilhada, e no entanto sei que há tanta cor aqui, a pedir para ser espalhada! Ardemos com o caminho. [Tens a certeza?] E no entanto só há areia, sem os teus braços. O sono não me larga nem com os olhos acordados, os sonhos versam a perseguição, a inquietação e um silêncio... aquele silêncio estranho que se ouve dentro de água, que pressiona os ouvidos e sabe a fim. Todas as horas são compridas demais e passam a correr; todas as divisões que percorro tresandam a cinza no ar. Fazem-me arder os olhos, provocando-me ataques de choro. [De certeza que já não te convenço a dançar?] Queria ir dar uma volta de av...

Porque é que escreves?

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[uma encomenda de uma amiga. ou simplesmente uma pergunta à qual eu queria responder] E perguntam vocês: porque é que escreves? Escrevo porque leio. Leio histórias... tantas histórias. Amargas, doces, com bigode ou estrelas. Faço silêncio para ouvir os corpos que dançam em silêncio: as letras, assim se chamam! E elas chamam por mim. E eu vou. Vou porque também quero contar histórias. Tenho em mim tantas histórias. Histórias do tempo em que tinha medo de olhar para fora. Histórias de hoje, de sempre. Histórias do agora, de fora. Sou capaz de juntar letras e com elas formar sonhos! Olho agora para as minhas mãos, e vejo que que fiquei com pó de estrelas nas mãos. Sopro o pó e sorrio. Foi de formar palavras bonitas, umas maiores, outras mais pequenas. Dá trabalho, temos de ajustar. Estica daqui, encolhe dali. Espreguiçam-se as letras, como se fossem braços longos. E depois aconchegam-se umas às outras, como os joelhos dobrados. Primeiro eu estava calada. Cá dentro nunca houve ...

A Prima da Vera.

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É tão longa, a lista das coisas que estão por fazer. Tão funda, como uma daquelas gavetas onde tudo se perde, e onde anos depois encontramos aquelas mini-coisas de cuja existência nos havíamos, há muito, desfeito. E é um dia, sentada numa esplanada subvalorizada enfiada no meio de prédios, a descobrir o prazer inesperado num dos venenos favoritos, derramando conversa sem pressa... É aí que redescubro um desses objectos minúsculos há muito esquecidos e que fazem parte da minha lista: o prazer adiado de estar e ser. Esse pormenor tão "pequeninamente" grande do sol a bater na cara. A aquecer-nos a casa, divisão a divisão, deixando que esse líquido brilhante se vá derramando e enchendo os espaços que estavam em branco, até que sobre apenas vontade de sorrir. Agora sim. Hoje. A Primavera chegou para mim. Em pezinhos de lã, tímida, mas entranhada.

Achas que sabes dançar?

Sou tão estranha com as saudades. Os dias não precisam de passar. É como a fome, logo que se acaba de comer. A alma pegajosa, ansiosa com qualquer coisa que não sabe explicar. Como um bichinho de boca pequena a morder-nos em sítio incerto. Esses dias, os das saudades, passam lenta e dolorosamente pelos ossos. Num instante estamos bem, no outro somos sugados para o vazio, para uma solidão sem cheiro. A comida deixa de nos abraçar por dentro, de satisfazer. Um bom filme não faz sorrir; andamos às compras e nada nos arregala os olhos. Não foi nada que tivesse acontecido. Ou se calhar foi o repente disso mesmo - do nada a acontecer (assim estilo paisagem a correr na janela do comboio), quando o coração queria ser abraçado. Não é da chuva, porque já chovia cá dentro. São as mãos frias; não, não é verdade. Apenas uma das mãos está fria. Achas que sabes dançar?! Não, minha querida... com as saudades, ninguém se aguenta a dançar. Hoje foi o primeiro dia de Primavera. Mas deixem-me ser...

Reflexões de um gato. Parte II.

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Abro os olhos. Estou sentada de pernas cruzadas no sofá, com a manta sobre as pernas. Devo ter passado pelas brasas. Ao meu colo dorme o gato. Enroscado sobre si mesmo, a cabeça inclinada de lado, a respiração profunda de quem confia no sono para lhe curar os males. Ainda há pouco ele deambulava numa estrada de alcatrão, rodeada de campo de um dos lados, e por edifícios tristes, do outro. Ou será que imaginei? São sortudos, os gatos. Não têm preocupações nenhumas no mundo. Podem deter-se a reparar nas papoilas. Fito o tecto, as decorações que o meu olhar alcança. Sinto um vazio do tamanho do fim. Esqueci-me de reparar nas pequenas coisas, ultimamente. Tenho uma pilha de papéis na mesa de jantar, à espera de ser alinhavada. Tem-me faltado o ânimo. As lágrimas começam a encher-me os olhos e eu, replicando a teimosia que venho desenvolvendo nos últimos tempos. guerreio com elas para não as deixar sair dos olhos. E de repente, como se tivessem abanado o mundo devagarinho... ou como...

A senhora e o gato.

[Um gato encontra-se agachado no meio da estrada, aparentemente contorcido com dores. Uma senhora apressada passa por ele, e decide que ficaria mal ignorá-lo, pelo que contrariada, vai ao seu encontro, determinada a ser útil. Dobra-se na sua direcção, a atitude condescendente.] - O que é que te dói, gatinho? - Doem-me as horas, senhora. - As horas? E que queres tu dizer com isso? - As horas, senhora. Aqueles saltos que o relógio dá, que são como soluços cá dentro. - Ó menino, mas então que é isso?! [a senhora endireita-se, desconfiada] - Não sei que lhe diga, senhora. Lá que dói, dói. - Então mas se as horas são saltos que o relógio dá, elas estão no relógio, e não em ti. Logo, como é que te podem doer?! [o gato hesita, olhando a senhora de lado. será que deve confiar a esta ocasional transeunte a sabedoria de uma vida? decide-se a confiar.] - Pronto, eu vou dizer-lhe a verdade: as horas não são saltos, embora pareçam. É uma ilusão. Eles são, na verdade, montinhos de minuto...

Pinguins e sobremesas.

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Pensei em ti quando vi isto. Não sei se é uma boa definição de amor; mas é, sem dúvida, uma óptima definição do nosso amor. A sobremesa partilhada era uma coisa nossa - quando estávamos a dois, com um grupo de amigos ou com família, as duas colheres num só prato a meio da mesa eram a nossa forma de dizer que éramos uma equipa. Das boas. As sobremesas são, agora que penso nisso, a metáfora perfeita: a dois sabe melhor. Partilhar as coisas um com o outro era natural, para nós. Quando já tínhamos barrigas cheias e deitávamos o olho à sobremesa, aceitávamos o desafio, desde que o fizéssemos juntos. Ou quando duas sobremesas diferentes nos atraíam, uníamo-nos e fazíamos frente aos dois pratos, saboreando dois em vez de um. E nunca tu me olhaste de esguelha por ver a minha colher aproximar-se do teu prato. Sempre adorei isso em ti. E tenho esperança que tu adorasses a minha atitude refilona, quando tiravas colheradas gigantes (ou se calhar irritava-te, não ...