A senhora e o gato.

[Um gato encontra-se agachado no meio da estrada, aparentemente contorcido com dores. Uma senhora apressada passa por ele, e decide que ficaria mal ignorá-lo, pelo que contrariada, vai ao seu encontro, determinada a ser útil. Dobra-se na sua direcção, a atitude condescendente.]

- O que é que te dói, gatinho?
- Doem-me as horas, senhora.
- As horas? E que queres tu dizer com isso?
- As horas, senhora. Aqueles saltos que o relógio dá, que são como soluços cá dentro.
- Ó menino, mas então que é isso?! [a senhora endireita-se, desconfiada]
- Não sei que lhe diga, senhora. Lá que dói, dói.
- Então mas se as horas são saltos que o relógio dá, elas estão no relógio, e não em ti. Logo, como é que te podem doer?!

[o gato hesita, olhando a senhora de lado. será que deve confiar a esta ocasional transeunte a sabedoria de uma vida? decide-se a confiar.]

- Pronto, eu vou dizer-lhe a verdade: as horas não são saltos, embora pareçam. É uma ilusão. Eles são, na verdade, montinhos de minutos que nós acumulámos. Melhor dizendo, que nós desperdiçámos, senhora... [sussurra o verbo desperdiçar]

[A senhora acocorou-se, agora atenta ao felino.]

- Continuo a não perceber porque é que te agarras à barriga, por causa disso das horas, e dos minutos e não sei quê.
- Minha senhora, eu também não sei. Sei que os homens fazem estas coisas, sem perceberem que o mal que os assola vem de dentro. Constroem relógios para controlar as horas, mas as horas é que os controlam a eles. Constroem instrumentos para preencher o silêncio - não ouvem a música que lhes vem de dentro. Tocam em objectos, senhora, sem valor nenhum para a alma, em vez de abraçarem mais uma vez, de tocarem os que amam. Imaginam aparelhos para aquecerem as casas, em vez de se aquecerem por dentro com sorrisos e gargalhadas... E por fim, os minutos gastos vão pesando nas costas. Vão tirando o espaço para respirar. Vem das entranhas, senhora, do coração.

[A senhora quis então levantar-se. Não conseguiu. Uma dor fina abraçava-se já às suas entranhas. Eram os minutos a passar.]

- Ó gatinho, mas tu não és novo demais para já sofreres deste peso todo?
- Na verdade, estou só aqui em solidariedade, senhora. [abre um sorriso, quente e calmo como se o próprio sol se lhe despontasse e derretesse nos lábios]. Reparava agora nas papoilas que acabam de desabrochar, no meio do campo [aponta, com a cabeça, dois beijos vermelhos aos saltos no meio do verde]. E antes que me fale em apanhá-las, deixe-as estar. Se eu as apanhar, só eu as poderei contemplar. Mas se eu as deixar ficar, cada pessoa que por aqui passe poderá partilhá-las comigo!

[A senhora olha as flores, e volta depois o olhar para este gato, que sem saber como, a fez respirar fundo. E a seguir, sorrir. Mas ele já não está ali.]

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Sabedoria felina ;)
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