Reflexões de um gato. Parte II.

Abro os olhos. Estou sentada de pernas cruzadas no sofá, com a manta sobre as pernas. Devo ter passado pelas brasas.
Ao meu colo dorme o gato. Enroscado sobre si mesmo, a cabeça inclinada de lado, a respiração profunda de quem confia no sono para lhe curar os males.
Ainda há pouco ele deambulava numa estrada de alcatrão, rodeada de campo de um dos lados, e por edifícios tristes, do outro. Ou será que imaginei?
São sortudos, os gatos. Não têm preocupações nenhumas no mundo. Podem deter-se a reparar nas papoilas.

Fito o tecto, as decorações que o meu olhar alcança. Sinto um vazio do tamanho do fim. Esqueci-me de reparar nas pequenas coisas, ultimamente. Tenho uma pilha de papéis na mesa de jantar, à espera de ser alinhavada. Tem-me faltado o ânimo. As lágrimas começam a encher-me os olhos e eu, replicando a teimosia que venho desenvolvendo nos últimos tempos. guerreio com elas para não as deixar sair dos olhos.
E de repente, como se tivessem abanado o mundo devagarinho... ou como se me tivesse ouvido os pensamentos, o gato abre os olhos e fita-me directamente. Fica ali por um bocadinho a ler-me, sem pressas. E parece que sabe tudo, só de olhar.

- Posso espreguiçar-me, ou vais começar a chorar?
Afinal não dormia. É manhoso, este gato.

Reviro os olhos e não lhe respondo, ainda que não consiga evitar um ligeiro sorriso. Dou-lhe espaço para se espreguiçar, enquanto brinco com os fios soltos da manta. O gato espreguiça-se lentamente, bocejando e esticando as patas, deixando que as unhas espreitem. Preto como o carvão, de enormes olhos amarelos, ele fica numa posição ridícula, de barriga para cima e patas encolhidas. Mas quando volta a falar, o seu tom assemelha-se ao de alguém com uma imensa sapiência.

- De que é que sentes falta, dona?
- Sinto falta dos abraços, gato.
- Dos que deste, ou dos que ficaram por dar?
Penso no assunto. O diabo do gato faz perguntas inteligentes.
- Dos que me faltam para ser feliz, gato.
[Consigo ver que o deixei a pensar.]

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