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Garra

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Chega a altura do ano em que me procuro.  Depois de passar o ano a fugir, eis que me reúno comigo em espaço neutro, para um pacífico acerto de contas. Há quem resista à ideia de que o fim de ano significa renovação, mudança. Algumas pessoas não gostam de o fazer, por ser uma tendência geral, rígida, limitada a esta época. Achar-se-á que se trata de uma moda, talvez. Para mim, no entanto, constitui um enorme alívio. Um momento de tréguas e de alimentação. Costumo partir do princípio de que não sei o que quero. No entanto, olho para as listas dos anos anteriores: a minha lista de afazeres/objectivos não mudou assim tanto. O que significa que, se calhar, até sei o que quero. Simplesmente não estou a fazer tudo o que posso para lá chegar. Faltam, então, garras. Para agarrar. E ser finalmente feliz. *Fotografia de Briar Cliff.

Dos sonhos de outrém.

Dói o coração, em não escrevendo. As horas gastam-se mais depressa do que notas verdes, em tempo de trabalho e festividades; mas não deixa de haver tempo para o doer. Dizem que é o crescer. Esmagam-se histórias dentro do sentir, ignoram-se enredos que pedem para crescer e saltar para o papel. Porque o tempo não acredita nas linhas mais ténues do dia, e avança em golfadas, desafiante. Mas enche-se o corpo de maleitas, à falta de tempo para escrever e dançar. Estas portas, que conferem ao meu mundo interior o poder de respirar e ser. À falta de melhor, dança-se no quarto, em substituição do acto de secar o corpo com a toalha depois do banho. Ensaiam-se os passos da coreografia sentada na cadeira do escritório, em lugar de pausas para cigarro ou café. Escreve-se na cabeça, durante os percursos de carro, desenvolvendo enredos ricos em exageros e bizarrias, tal é a necessidade de expressão. Falam-me na necessidade de crescer. De aguentar as circunstâncias, de me habituar. E assim sinto ...

Outono. Gratidão.

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A alma vai-se condoendo com a necessidade de se recolher. O sol ainda petisca nos dias mas a sua cor vai-se amarelecendo, desbotando como um pano que se lavou muitas vezes. O Outono traz-nos isso; um lento abotoar, um avermelhar das folhas e uns rasgos de vento em dias de quarto crescente, para nos relembrar que é tempo de armazenar. As forças do ser concentram-se, atarefadas, em calcular o que é preciso para aguentar o rigor de mais um inverno. Sejamos inteligentes, diz-nos o coração, e tratemos disso agora. Para depois podermos congratular-nos à lareira, se a vida o trouxer em sorte, com as barreiras que erguemos para o frio. Carreguemo-nos de risos como se fossem cobertores, diz a criança de dentro. Vão fazer-nos falta para as brincadeiras dentro de casa. Aproveitemos ainda o chão morno e dancemos, agora, e ainda ao sol, diz o corpo. Como uma bateria solar que se carrega até transbordar, minutos antes de a luz se apagar. Vamos coleccionar mais algumas recordações dos pés solto...

Até onde vai a extravagância de uma alma?

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Chega esta altura do ano, e eu sinto formigueiros. A pele dorida, escondida o ano todo, arde-me encostada à roupa. Pede-me luz. Pede-me espaço. Os pés deliciam-se com a liberdade que o calor lhes traz. Resmungam imediatamente, se eu tentar encarcerá-los nuns ténis. Só estão felizes de cara encostada ao chão fresco de casa. Ou melhor ainda, no chão do estúdio, "mascarrados" e a dançar até estarem, como hoje, repletos de nódoas negras. Mas livres. A pele está branca e pede-me sol. As feridas das mãos pedem-me o sal do mar. As convenções sociais exigem que só mostre o corpo quando estiver livre de pêlos. Mas todo o meu corpo deseja incondicionalmente um pedaço de sol. Como o espanta-espíritos no alpendre, que aguarda mudo que o vento chegue, para lhe devolver a vida por instantes. Não sabe dançar sozinho... mas tem as sapatilhas prontas e a voz afinada... dentro dele guarda a ternura de uma melodia, que só espera ser tocada. Até onde vai a extravagância de uma alma? Pés ...

Conversas de dentro.

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Onde estás? Presa numa teia. Assim estou desde o início dos tempos. Não se explica. Não se percebe. Não há razões para não sorrires, menina! E não há fios a prenderem-te os tornozelos... estás de pés no chão, afinal. Livre para seres quem quiseres. O que esperas para abrir as asas? Não sei explicar... nem estou certa que tenha de o fazer! Mas vá... a verdade é que me sinto sem asas. Ou sinto-as envoltas num novelo confuso. Não sei distinguir onde começam as minhas asas e terminam os fios deste labirinto... somos um só e eu não sou nada, senão uma miscelânea de coisas que queria ser e que não encontro espaço para concretizar! Olha, assim como se tivesse um molho de peças de um puzzle na mão, e não tivesse espaço para as espalhar, separá-las e poder transformá-las naquilo que elas são; juntar-lhes os contornos, as sombras e as cores e compreender o seu significado! Estou a dizer-te que tens asas... não acreditas em mim? São bonitas, brancas. E os teus pés assentam no chão, direitos...

Danço e sou um novo lugar.

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Em alguns dias, se tivermos sorte, a dança ajuda-nos a evaporar as coisas da alma. As preocupações vão escorregando através dos poros, fazendo cócegas. As alegrias expressam-se com uma verdade recuperada da infância... Porque tal como uma criança não possui naturalmente o dom do artifício e do engano, também o corpo conserva essa pureza. Deixá-lo falar é, por isso, guardar filtros e deixar histórias de lado. O privilégio de uma viagem no tempo... que podemos aprender a prolongar. Há uma verdade primitiva e absoluta, nas emoções que transpiram de um corpo que dança. E o quanto damos de nós próprios enquanto dançamos revela, na verdade, a generosidade do nosso espírito. Quando somos capazes de nos entregar plenamente, conhecemos um novo equilíbrio dentro de nós. Uma nova liberdade. E no entanto, é também um voltar a casa. Dançamos e a nossa alma põe-se em conversa com o mundo. Por isso eu danço, e assim abraço a criança que vive em mim. Nos dias bons, que são cada vez mais, é impo...

Janela

Saio do banho. Oiço um crepitar longínquo que não consigo perceber. Será desta que a madrugada começa a despertar em mim? Sinto assim um formigueiro cá dentro. Pergunto-me se é finalmente a luz a querer irromper para fora de mim. Procuro vestígios à minha volta. Fios de luz entornados na sombra, evidência de um começo. De uma janela que quer abrir-se de mansinho. Espreguiço-me. Ponho " Bohemian Rhapsody " a tocar, o volume a abaular os tectos. O corpo desliga-se da mente, move-se sem fios condutores. E no entanto, algo parece conduzi-lo. Algo cá dentro lhe dá electricidade. Não consigo parar... Tenho esta visão colada a mim, pegada ao corpo como o suor num dia de calor. Movo-me com crescente intensidade, para a tentar sacudir de mim. Mas talvez contrariando tudo, ela torna-se parte de mim. Talvez ela encontrasse essa brecha em mim, e aproveitando-se dela, se esgueirasse alma adentro. Às tantas danço-a. Danço esta visão até à exaustão, até que os cabelos acabados de sair d...