Dos sonhos de outrém.

Dói o coração, em não escrevendo. As horas gastam-se mais depressa do que notas verdes, em tempo de trabalho e festividades; mas não deixa de haver tempo para o doer. Dizem que é o crescer.
Esmagam-se histórias dentro do sentir, ignoram-se enredos que pedem para crescer e saltar para o papel. Porque o tempo não acredita nas linhas mais ténues do dia, e avança em golfadas, desafiante.
Mas enche-se o corpo de maleitas, à falta de tempo para escrever e dançar. Estas portas, que conferem ao meu mundo interior o poder de respirar e ser.
À falta de melhor, dança-se no quarto, em substituição do acto de secar o corpo com a toalha depois do banho. Ensaiam-se os passos da coreografia sentada na cadeira do escritório, em lugar de pausas para cigarro ou café. Escreve-se na cabeça, durante os percursos de carro, desenvolvendo enredos ricos em exageros e bizarrias, tal é a necessidade de expressão.
Falam-me na necessidade de crescer. De aguentar as circunstâncias, de me habituar. E assim sinto que morrem os sonhos em mim.
Olho à volta e deparo-me com esqueletos de sonhos. Porque as circunstâncias assim ditaram. A gravidez ou a separação inesperada, a necessidade de dinheiro, o desemprego do companheiro, doença ou morte de entes significativos foram lavrando a terra dos sonhos de todos e cada um. E ditam-me as regras do mundo real, do alto desse monte lusitano: eu também era assim, e agora olha para mim. De que me serviram os sonhos?
Fico abananada, como é meu bom hábito. Nada passa por mim sem me perfurar. É inevitável, a pele demasiado fina, onde tudo deixa marca. Mas deito-me a ruminar no assunto.
Em todas estas circunstâncias esteve um factor comum: o poder de decisão. De uma forma ou de outra, temos sempre em mãos a escolha de como reagir. Paramos? Desistimos? Ficamos no mesmo sítio, reclamando da vida? Ainda, fantasiamos sobre coisas que na realidade já não nos fazem sentido? Ou reparamos, reconstruímos e continuamos em frente?

Por isso, devagarinho como é meu hábito, vou cosendo a pele, para reparar as feridas do que por mim passou. Se eram sonhos perdidos de alguém, frustrações de balão furado ou lágrimas ácidas, tenho de me lembrar em voz alta que eram de outrém; não eram meus, e como tal, não me pertence deitar-me com eles. Importa aceitar que em mim ficou a marca, mas que escolho não me deixar definir por ela.
E se o meu passo demorar a tomar ritmo, terei de aceitá-lo. Mas porra, há-de ser de cabeça erguida, em direcção aos sonhos que em mim construí. Escrevendo e dançando, para soltar o passo.


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