Mensagens

Dar um momento ao coração

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[Estávamos dormentes. E de repente não sabemos o que vem depois de nós. Nem sequer durante.] De repente o mundo agiganta-se e cresce-se-lhe o peito na nossa direcção. De repente ele está zangado. Não - ele já estava zangado. Nós é que não vimos. Não achámos que fosse nada de sério. Uma birra, quisemos achar. Já lhe passa. De repente, é urgente parar. Mas que enorme contrasenso numa só frase! Nem me dou conta de que tenho os bolsos cheios. De trocos para o café. De mensagens às quais não respondi. De beijos, de abraços, de tempo, de escolhas. Sento-me, tentando pintar um daqueles livros para colorir para os adultos que estão a tentar reaprender a estar no aqui e no agora. Escolho o desenho que mais me diz algo, ainda em branco. Vou repescar lápis antigos numa gaveta perdida, reeduco a mão para o papel. Mas até os lápis me parecem gastos, a cor cansada mastiga o papel - marca-o, em vez de o pintar. De forma semelhante, agora que penso nisso, às noites de sono nas minhas...

Será que é assim que se sentem os peixes em Veneza?

Como diz Daniel Sampaio, não é fácil resistir à melancolia de olhar pela janela e ver o mundo lá fora. Mas a epidemia vai passar. O carácter temporário é talvez o mais importante, psicologicamente. Por mais assustadoras, imprevisíveis e incontroláveis que nos pareçam as circunstâncias actuais, também elas irão mudar. Talvez não de um “clique”, como gostaríamos, mas a seu tempo. E o que custa, respeitar o tempo do que não é nosso? Especialmente quando o nosso espaço é invadido, as nossas rotinas corrompidas. Mas de todo este mal, de toda esta dor e mudanças, pode advir também um bem maior. Maior do que nós, maior do que o medo e tantos padrões podres que estavam instaurados. Somos forçados a parar, a abrir os olhos e a escutar. E nesta breve paragem, já ouvimos a Terra a respirar fundo.  Na China (e não só), os níveis de poluição foram reduzidos em toneladas com vários zeros atrás de si.  Os canais de Veneza recuperam a sua cor; os peixes atrevem-se...

Um Quebra-nozes, para quebrar a tempestade.

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Esta quinta-feira, apesar das cautelas lançadas em torno da Elsa (a tempestade, não a princesa!), fui ver o Quebra-Nozes. Fui com uma amiga com quem partilho a paixão da dança - conhecemo-nos, aliás, quando nos iniciámos nas lides da dança contemporânea, há uns oito anos atrás. E apesar dos mais de dez anos que nos separam, encontrámos um espaço comum muito engraçado, onde partilhamos este e outros interesses comuns - como os livros, a escrita e as filosofias de vida. Fomos ver a produção portuguesa criada pela Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões, em Lisboa. Sem grandes preâmbulos na escolha, até porque, como dizia a minha amiga, em podendo escolher, há que beneficiar a produção nacional (quando é boa, naturalmente, como é o caso). Todos os procedimentos em torno do (aparentemente!) simples acto de chegar ao teatro se revelaram, desde logo, uma aventura! Estávamos em alerta amarelo; as estradas cheias de pessoas ansiosas por chegarem a casa e ligeiramente encadeadas pelo...

E eu aqui sentada a escrever. E tu a morder o lábio.

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Mordo tantas vezes a língua. E talvez tenha passado uma boa parte da minha vida a morder a língua para evitar dizer coisas menos boas. Para não magoar alguém. Para conter a criança impulsiva. E também para não me deixar ouvir. Mas agora, porque até ver a Terra continua a girar sobre si própria, a vida vai dando umas voltas engraçadas. E eu dou por mim a morder a língua para não te falar das coisas bonitas que levo dentro do peito. Desses objectos indescritíveis e inomináveis que são os sentimentos que sinto por ti, que não cabem dentro de mim. Que preciso de partilhar. E já vejo a tua sobrancelha a arquear-se, num movimento lento com efeito de mola. A boca a mover-se como se tivesses palavras presas dentro da boca, uma garfada de estrelas que não consegues deixar sair. Vejo-te a expressão contida; os olhos a esforçarem-se, enquanto tentas maquinar uma forma nova de me explicar que só interessam os actos, e não as palavras. E eu aqui sentada a escrever. Esta é a única parte do...

As três bênçãos.

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[Esta semana retomei um exercício que há muito não fazia: o das três bençãos. É um exercício que nos pede que diariamente atentemos a pelo menos três coisas boas que aconteceram no nosso dia, e pelas quais estamos gratos. Este exercício leva-nos a estarmos mais presentes e a focar a nossa atenção em coisas positivas que nos acontecem todos os dias, mas das quais aprendemos a distrair-nos. E assim, sem darmos por isso, criamos hábitos que fazem tão mal ou pior do que um hamburguer, descuidando a nossa dieta emocional. Não sei se sabem, mas ao transformarem estes hábitos, esse simples processo pode alterar circuitos neuronais, e com isso aumentar o nosso sentimento de bem-estar - por várias razões com as quais não vou agora aborrecer-vos. Gosto de chamar-lhe um “desfazer de nós” na nossa mente, e recomendo-o clinicamente muitas vezes. Já o fazia na minha cabeça, ocasionalmente. Mas agora, a conselho de quem sabe, faço-o por escrito, diariamente. Porque os dias não têm sido fáceis, r...

Segredo do ir.

Essa criança pura, de olhos cheios de rugas. Tão cheia de medos quanto está de anseios, não se deixa parar - nem quando está cansada; talvez especialmente aí. Pode não saber bem por onde caminha em todo e cada dia, mas isso não a trava - e às vezes, é pura e simplesmente esta audácia roçando a ignorância que mantém tão vivo o brilho dos seus olhos. - Então mas vais assim? Então e se... - Não posso trabalhar com "ses". Deixa vir. Deixa ver. E eu arregaçarei as mangas e lidarei com o que vier. Como sempre fiz. Nem sempre nem nunca, menina, aconselham os sábios e os experientes por entre dentes. - Isso está tudo muito bem - diz a menina, antecipando-lhes os pensamentos - e eu vou ter isso em conta. Mas não vou deixar de tentar. Tentar é o único verdadeiro passo antes de conseguir. Com o medo, vou deixar-me ficar aqui. E isso sim, isso não vai ser bom para mim. Porque o medo torna-se raiz. E raiz ó é boa enquanto nos ajuda a continuar a crescer. Muitos provavelmente a j...

Carta ao meu querido mês de Setembro

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Querido Setembro: Vou admitir-te isto bem baixinho, só para ti que me podes ouvir: o coração é um lugar estranho. Por mais metódico que se seja; por mais disciplinado e comedido. Por mais suor que se derreta a construir um mundo que nos faça sentido, por mais esforço que se ponha na criação de regras. Haverá sempre um dia em que damos por nós a movermo-nos num círculo, procurando formas de morder a língua. E se não as arranjarmos, vamos na mesma. Só ainda não sei dizer-te se isso define sempre e apenas a loucura, ou se um dia também poderá ser o primeiro passo para um caminho feliz. Onde as saudades teclam aquela mensagem inconveniente por nós. Onde aquela música é teimosa em aparecer e provoca uma lágrima que se deixou domar. Onde damos por nós no sítio certo, mas de coração inquieto (e disso é preciso tirar lições, sem deixar de aproveitar o que se pode). Onde o sono é escamoteado e onde a falta daquele olhar (daquele que é carícia; porque a falta dos outros lá aguentamos) ...