As três bênçãos.

[Esta semana retomei um exercício que há muito não fazia: o das três bençãos. É um exercício que nos pede que diariamente atentemos a pelo menos três coisas boas que aconteceram no nosso dia, e pelas quais estamos gratos. Este exercício leva-nos a estarmos mais presentes e a focar a nossa atenção em coisas positivas que nos acontecem todos os dias, mas das quais aprendemos a distrair-nos. E assim, sem darmos por isso, criamos hábitos que fazem tão mal ou pior do que um hamburguer, descuidando a nossa dieta emocional. Não sei se sabem, mas ao transformarem estes hábitos, esse simples processo pode alterar circuitos neuronais, e com isso aumentar o nosso sentimento de bem-estar - por várias razões com as quais não vou agora aborrecer-vos. Gosto de chamar-lhe um “desfazer de nós” na nossa mente, e recomendo-o clinicamente muitas vezes.
Já o fazia na minha cabeça, ocasionalmente. Mas agora, a conselho de quem sabe, faço-o por escrito, diariamente. Porque os dias não têm sido fáceis, recuperar o equilíbrio exige de mim uma maior disciplina. Para praticar o olhar focado em coisas pequenas e bonitas - porque elas acontecem-nos. Só temos de escolher estar lá, reparar quando elas passam. E escolher segurá-las. Segurá-las com mais força do que aos empurrões, às más educações, às tosses. Às dores.
Escolhas. Escolher treinar a nossa mente para as coisas que nos fazem bem.
Agora que penso, foi isso que comecei a fazer há 365 dias atrás.
Bem sei que os dias não estão para reparar muito nisto. Mas o espírito, mesmo amachucado, não deixa de se querer endireitar depois de dobrado, como a cana de bambu. Suponho que além de optimista, sou também romântica.]

Há exactamente um ano atrás, espreitei por uma janela. Não conseguia ver os pormenores todos. Ainda era cedo. Mas o meu instinto provocava-me borboletas na barriga. Dizia-me que entrasse (ou saísse?).
Tinha medo, naturalmente. Podia focar-me em várias coisas, olhando através daquela janela. Nas que via e nas que ainda não conseguia distinguir. Davam-me medo, as coisas que eu não conseguia ouvir.
Mas eu escolhi ouvir as borboletas.
Escolhi saltar, nessa noite, acreditando no som transparente das suas asas (acreditando no brilho dos teus olhos). Sabendo que ia sentir um arrepio gelado, ao deixar-me cair, mas que depois disso podiam vir cidades, almofadas de verde e luz que eu nunca tinha visto. E queria ver.

Por isso saltei.

Ainda bem que o fiz.

Nunca tive medo da palavra benção, apesar da sua conotação religiosa. Entendo-a como um conceito amplo, que não cabe somente dentro do guarda-chuva  de Deus nas suas várias formas e nomes (por maior que seja o guarda-chuva Dele). Pelo contrário, a palavra benção faz-me sentido para explicar as coisas boas que nos acontecem (a quem pertence a mão que as põe no nosso colo, isso aí é outra discussão) e pelas quais estamos gratos. Talvez as tenha também visto já sob o nome de "coisas maravilhosas".

E gosto especialmente de me lembrar que, se é uma coisa boa que nos aconteceu, vale mais aproveitá-la, beijá-la, bebê-la, porque não temos de forma de saber quando é que a mesma mão que deu decidirá tirar. Sem que tenhamos controlo sobre isso. E sabendo que quando isso acontecer, prefiro ter na boca o sabor da gratidão pelo que tive, do que a amargura do que perdi. Mais fácil de dizer do que de fazer, eu sei. E se vinham em busca de receitas infalíveis, considerem-se chegados a um beco. Só vos posso falar daquilo que me ajuda a mim a manter algum equilíbrio, como pequenino que aprende a andar, em toda a sua imperfeição e processo de aprendizagem (constante e eterno). Aqui vai:
Vou aprendendo que a melhor forma de manter esse sabor na boca (como o do café que estou a beber) é vivendo o mais possível essa benção, num estado de presença e foco, para que ela se torne parte do nosso presente, e portanto de nós. Para que mesmo depois de partir, os seus fios, como fios de cabelo, sejam já parte da nossa tapeçaria. Esses fios ficam connosco. Assim como os gestos.

Tudo isto para dizer que não sei por que mão vieste, nem por quanto tempo irás ficar, mas que és uma benção. Seguro-te nos fios e bebo-te. Vou ganhando gestos novos, e reencontro-me com outros que estavam adormecidos, mas que são tão meus. Vou rasgando o sorriso enquanto vejo uma tapeçaria desenhar-se na minha cabeça, como se fosse uma criança de 6 anos sentada no carro do tio, a fazer viagens à volta do mundo sem sair da garagem. Consciente de que muito do que vejo dessa tapeçaria ainda não existe. Mas a aprender a sentir o arrepio que espera atrás de cada fio que se entrelaça no outro. O som único que cada um deles faz, como cordas de uma guitarra, ressoa-me cá dentro. Devagarinho. A seu tempo respirando, como o peito adormecido da criança que sonha. De olhos bem abertos, pés cada vez mais assentes no chão e a mão aberta para o caminho. [tanto disto tenho-o aprendido contigo! por isso és uma benção; por este cheirinho a sol que é a gratidão que eu sinto por quem és, e pelo que dás. pelo que escolhes partilhar comigo.]
Um caminho que se faz de espera (com ela, tanta paciência e tolerância, que nem sempre parece existir), a tempos de coragem e a outros de silêncio. E a muito tempo de trilhar em que só se ouvem os meus passos a fazer estalar as folhas debaixo dos pés. Mas quando chego a uma encruzilhada e reconheço o ritmo dos passos que se conjuga perfeitamente, como instrumentos, há um arrepio porque sei que não estou, nem estive sozinha. E sei que estou no caminho que me faz sentido. No caminho onde as asas das borboletas na minha barriga fazem um som transparente que me arrepia, me recorda a minha paixão por mim, e pela vida. Naquele caminho que pode abrir-me as portas da garagem e fazer-me voar.

Há um ano atrás perguntaste-me: tens a certeza? Olha que as coisas nunca mais vão ser iguais, a partir daqui. É como saltar, não dá para voltar atrás.
Irrita-me dizer isto, mas tinhas razão. Tens tantas vezes razão. E ainda bem (pelo menos desta vez).

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