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Grata. devagarinho.

Devagarinho. Como o rumor de um tambor ao longe, numa cidade que se espera desprovida de tambores. Como o ronronar quase surdo de um gato, a um tempo apaixonado e terapêutico, vibrando subtilmente sob as nossas mãos. Um borbulhar indivisível no meio das ondas, das correntes. Quase, digo eu e sublinho, quase indistinguível. A um ritmo que enlouqueceria qualquer são; um passo de tartaruga doente, um sol amarelo e fraco que praticamente se confunde com um dia nublado. É assim que descrevo esta sensação lenta no peito, que saboreio quase sem respirar, com medo que me fuja. Paciente como em tempos fui a observar os animais a brincar, até me poder aproximar e fazer parte do seu mundo, observo e aguardo, grata desde já. Grata por este rumor no peito, cujos passos fazem lembrar o brilho de viver que em dias passados me encheu os olhos. Grata por poder sentir algo parecido, depois de ter mergulhado durante anos numa lama baça que me impedia de ver qualquer tipo de luz - sobretudo a luz qu...

Carta de amor

Minha querida D., Que a luz te toque, todos os dias. Como o gesto gracioso da mão dos que te amam, neste teu dia - mas que o gesto se repita em salpicos, em colheradas, e de vez em quando em lufadas, para arrulhar esse sorriso bom no teu rosto, e te encher por dentro. Que essa luz te venha insuflar os passos, torná-los mais leves e fáceis, enquanto exploras este nosso mundo, fazendo dele teu. Sei que a luz não chega a todo o lado, mas sei que ela vai chegar até ti. Tens por perto dois dos mais bravos cavaleiros que algum dia vi. São os teus guardiães e neles sei que podes confiar toda a tua inocência, as tuas dúvidas, os teus medos. São amor em estado humano.  Não podes ainda ler, talvez não saibas entender. Mas hoje escrevo para os teus pais, duas luzes que admiro e amo, para lhes dar um beijo por ti, e lhes dirigir as palavras que eles um dia irão ouvir de ti. Vejo os seus olhos beijando-te, orgulhosos, cheios de ti. Quero com estas palavras ser espelho - para que si...

Carta para o mês de Outubro

Querido Outubro, Costumas ser tão doce para mim. Já me trouxeste o amor quando eu estava longe; já me trouxeste trabalho quando eu estava desorientada. Trouxeste já a ternura dos amigos. Até uma bicicleta, belo Outubro, a combinar com o Outono, para me ajudar a não parar. Trazes recomeços, abraços, esperança. Costumas trazer sol q.b., luz - uma luz mais amarela, de que eu gosto. Costumas trazer-me força para escrever; inspiração. E o que eu preciso desse mel. Trazes coisas pequenas, detalhes a que muitos não prestam atenção, mas que enchem a alma de quem pede pouco e está atento. Trazes o recolhimento, a introspecção, e o fôlego - fôlego de quem ama o calor, para inspirar fundo e aguentar mais um Inverno. E os outros meses têm sido tão bandidos. Se eu te contasse tudo, irias concordar comigo. Mas não me vou queixar. Tenho sorte, no meio disto tudo. Mas não me importava de me reencontrar com o meu brilho. Com aquele sorriso que persiste para além das rugas, que se estende pela pel...

Alguém por aí, que também esteja a recomeçar?

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[Hoje pensava nisto. Pensava ao longe, sem me envolver demais. Ou pelo menos sem me envolver ao ponto de doer. E decidi escrever. Para mim, mas não só. Para os que possam andar por aí, e que também dêem por si aqui, onde estou] Sou carrasco de mim mesma, das minhas ideias e tentativas. Fosse eu restaurante novo, e seria também o crítico impassível e draconiano que destruiria, com palavras rebuscadas, todo e qualquer projecto de sonho desse restaurante - cingir-me-ia a todo e qualquer movimento dos empregados, a toda e qualquer tentativa de inovação criativa na cozinha, a toda e qualquer combinação de ingredientes e sabores nunca antes tentados. Resumindo, eu sou o meu pior pesadelo. E faz agora cerca de um ano e meio que me lancei numa tentativa furiosa de mudar a minha vida. Comecei uma revolução, acreditando que com o tempo poria também este crítico porta fora. Até ao momento não aconteceu, claro está, mas pelo menos já o tenho ido acalmando. E já tenho ido aceitando que ele es...

Era o sonho, ou eu.

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Vi-te ao longe e quis ir ao teu encontro. Não sabia ainda o que é que isso significava. Não sabia nada. Mas achava que sim. Assim fiz, de impulso. Como em quase tudo o que faço. E deixei-me estar ao teu lado, porque fazia sentido. Porque o mundo se abria à nossa passagem e eu via um outro mundo, desfilando nos teus olhos. Um mundo de coisas novas, com brilho, sem tecto e sem fim. Um mundo onde eu podia caminhar e ser dona de qualquer coisa. Talvez de mim. Mas não foi isso que aconteceu. Ou pelo menos não foi a única coisa que aconteceu. De facto, com alguma frequência aconteceu o inverso. Estar contigo acabava por me dar uma sensação de impotência. Por vezes esmagadora. De não ser suficiente. De não conseguir chegar aonde tu precisavas que eu chegasse. E lá estou eu, às voltas para tentar pôr a culpa só em ti. Claro que também tive culpa - pelo menos metade é minha. A verdade é que eu não estava lá. Não sabia o que estava a fazer, e por isso só posso agora pedir desculpa. Como...

Mesmo que isto seja um texto de merda.

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É preciso insistir, dizia-me um passarinho hoje. É preciso, mesmo em dias cinzentos, insistir. Abraçar a frustração de não conseguir escrever. Sentarmo-nos com ela a fumar um cigarro, encará-la, deixar que nos dissolva a paciência, e vai daí escrever alguma coisa; qualquer coisa. Pode ser que daí surja zanga, mais zanga ainda, porque ao reler percebemos: "isto está mesmo uma merda!". E pega-se nessa zanga avolumada, nessa trouxa sem jeito, nesse molho de brócolos mal enjeitado, e escreve-se outra vez. Zangados e tudo; a fumegar, se for preciso. "Tal como andar de bicicleta", dizia-me o passarinho, "se não praticas durante muito tempo, a atrapalhação não quer dizer que tenhas deixado de saber andar. Mas não convém atirares-te por uma rampa abaixo, depois de teres passado muito tempo sem andar. Começa devagarinho." Aceita o ziguezaguear da bicicleta como teu. Como natural, e como temporário. Irrita-te com isso, se isso te fizer mexer para mudar. Mas nã...

Sentir.

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Hoje levantei-me e estava calor. Há vários dias que o calor não amaina; as paredes não arrefecem, o corpo não tem sossego. Tomam-se dois e três banhos num dia, para tentar aplacar esta inquietação. Tudo está demasiado quente: a sopa está quente; o computador está quente; a casa está quente; a rua, a roupa, o corpo - que irritação, sentir que tudo está quente. E lá vamos nós, na nossa agitação, reclamando pelo caminho, no meio do trânsito; reclamando das pessoas com quem temos de falar, ou daquelas que não falam connosco. Passamos o dedo pelo telemóvel e verificamos "gostos" em publicações, como se verificássemos abraços ou carinhos. É difícil sentirmo-nos gratos, com a pressa dos dias. Não nos confortamos com o rumo que o dia está a levar, ou mesmo os dias em geral. Sobra-nos pouco, pelas nossas contas. Queríamos mais. E depois há pessoas que acordaram num dia como estes, nossos, sem saberem como é que ele iria acabar. Sem saberem que seria o último carinho, a última ...