Conversas de esplanada


 Sento-me numa cadeira na esplanada e pouso o coração em cima da mesa.


Por uma vez, ao fim de dois anos, sem pensar se a mesa estará desinfectada. Talvez porque, ao cumprir três anos sem ti, tenho outras coisas na cabeça. 


Ao lado do coração pouso também o copo de balão com moscatel. Sem gelo, porque isso seria estragar duas coisas boas, dir-me-ias tu se estivesses aqui.


Dirias que a esplanada não precisa de ser especial. Nem o dia. Nem sequer o moscatel.


Dirias que importa desfrutar do que está aqui. Importa o coração posto nos gestos, a cada momento, procurando fazer o melhor que sabes. Importa estar para quem está a teu lado.


É assim que, ainda que sem a tua mão firme a guiar-me, há momentos em que dou pelos meus gestos seguros. Por vezes tão parecidos com os teus - nas coisas que me saem assim porque sim. (Como o concerto dos Humanos, lembras-te? Em que estávamos os dois tão felizes porque o passado se unia ao futuro e nos juntava ali aos dois, nessa cumplicidade sem necessidade de palavras.) Porque eu me sentia (e em certos momentos parece que ainda sinto) no top das tuas pessoas favoritas. É o quão privilegiada eu sou.


Não gosto de celebrar datas de perda. Nem de tristeza. Permito-me reparar nelas, como quem medita, e permito-me sentir o que vem com elas. Mas não mergulho nelas nem faço questão de as assinalar. Porque acredito que é mais importante assinalar a vida. O bom. O que aquece.


Mas lá calha que o coração ande pendurado; que as saudades se vão tornando mais excêntricas e exijam mais atenção. Sempre ouvi dizer que assim é: que vai pesando mais com o tempo. É a primeira vez que o sinto assim. Mas tenho de admitir que também me é verdade. Sinto o vazio como uma pedra que se vai escavando e vai abrindo um poço cada vez maior no peito. Mais difícil de voltar a preencher. E no entanto, mais pesado. Como um nó que queremos desenlaçar mas que cada vez se torna mais apertado.


Mas ao mesmo tempo (só mais uma das sementes que plantaste em mim), apraz-me trazer a esta discussão interna o conceito budista de desapego.

Porque é ilusória a ideia de nos preenchermos verdadeiramente com toda e qualquer coisa que nos seja externa. De nos agarrarmos seja a quem ou ao que for como bóia de salvação. Nada fica, nada é eterno e nada é nosso. 


Reajo a esta ideia primeiro com um sentimento de aflição, inerente à minha condição de humana imperfeita. Mas respirando fundo um (bom) par de vezes consigo por vezes, em raros momentos de iluminação, vislumbrar também um certo alívio. Porque se não é nosso, não vale a pena agarrar o medo de que vá embora. Porque é certo que irá. O bom e o mau.


Esta foi só uma das muitas mil coisas que aprendi contigo. A viver em aqui, e em amor. A reparar nos meus. E quando sobra, a reparar em todos, com gratidão. A escavar bem dentro de mim sem vergonha, à procura de um sorriso. Por mais dor que sinta (e ainda que as fibras dos meus tecidos, tal como as tuas, sejam feitas de nostalgia). E a deixar-me impulsionar pelas ondas geradas por esse sorriso, para seguir em frente.


E assim me encontro aqui sentada, numa esplanada qualquer, a cuidar de quem tu amas e que eu amo também. Com o coração sentado na mesa, ao lado do copo já vazio. O coração aponta-me para as mãos, que parecem cheias de nada e no entanto estão cheias de tudo o que importa. Então, se não souberes para onde te virar, sorri e continua, porque está tudo aí dentro, diz-me ele. Como tu dirias, se pudesses. E fá-lo-ias, que eu sei, de sorriso rasgado, com o teu coração sentado ao lado do meu e outro copo também já vazio de moscatel.


(E como não podes, puseste-me a escrever para ti, do fundo deste poço que afinal ainda não é só feito de pedra)



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