Vai e beija o mar por mim

Ela foi e pediu-lhe. "Beija o mar por mim."
Nunca mais poderia voltar ao mar. Não àquele; não àquela praia.

Que tristeza tamanha. Deparava-se com uma imensidão de nada, de vazio. No peito gritava uma sensação de injustiça. Não poder tornar a uma casa onde se foi tão feliz. Onde nos redescobrimos, onde fizemos outros felizes. Como quem fez algo de errado.
A frustração de saber como é raro sentir assim. Aqueles instantes que queremos agarrar para nunca largar, "é isto mesmo", "estou no sítio certo", "quem me dera que nunca acabasse". E depois ter de largar tudo; pegar fogo ao que se construiu, ao que se foi; ter de fugir e começar de novo.

Um dia houve medo.
Medo de nunca mais conseguir ordenar aos dedos que se juntassem em equipa para escrever. Por momentos pareciam ter deixado de lhe dar ouvidos.
Medo de ser agora irremediavelmente incompleta.
Medo do seu coração, que enfim revele ter passado a ser de pedra; sem sonhos, sem calor, apenas pesando na alma, pesando no corpo, e por fim pesando nos dedos que, desistentes e ensonados, abandonem aquele que fora até ali o seu destino e prazer.

Pobre criança; não sabia ainda que o irremediável é apenas algo que ainda não cresceu o suficiente dentro de si, para lhe permitir ver a solução. Mesmo que esta seja a falta de resolução. Ainda não é tempo, mas há de ser.

Talvez tenha de se esforçar para desfazer os grãos de pedra que ameaçam colar-se ao coração, mas recusa-se a acreditar que eles possam alguma vez substituir aquilo de que é feita. Talvez esteja cansada, calejada. Mas enquanto as manhãs cheias de sol se seguirem às noites frias de lágrimas, há esperança. Enquanto o abraço de uma criança for o suficiente para derreter o frio dentro de si, estará protegida.

Não sabe bem como se faz. Resiste ao sono para conversar noite fora; durante o dia será uma sonâmbula. Dorme no chão para não perder a chegada, pé ante pé, da madrugada; não sabe por quanto tempo aguentará esta charada. Mas enquanto houver amor, dá para acreditar. Deita-se a pensar que um dia, daqui a muito tempo, talvez possa voltar a beijar o mar.

2017. Esse será o ano deste livro. Querem ajudar-me a escrevê-lo? Pois podem começar por escrever isso mesmo: 2017. Escrevam aí onde quiserem.


Fotografia de Alexandre Guidetti.

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