A própria.

"Tens de caminhar sozinha, agora".
O medo instala-se em cena. Talvez já se sentisse em casa antes, mas não se mantinha de guarda a todas as horas do dia. Costumava aparecer somente à noite, para a acompanhar na sua solidão. Povoava-lhe o adormecimento e o sono, tornando ambos intranquilos. Era assim que ela sabia que ele estava lá.
Um dia, ela decidiu começar a procurar a solidão às escondidas do medo, rezando para que a luz do dia abafasse o som dos seus passos. Pôde passar algum tempo a conhecer melhor a solidão, fazendo dela uma segunda pele.
Mas um dia, vá-se lá saber porquê, o medo descobriu. Sentindo-se enganado, decidiu entrar em cena para ficar.
Agora esse medo é um cabide que a segura todo o dia. E a solidão deixou de ser momento e tornou-se condição, pano de fundo, cenário. Mesmo com vários actores em palco, é a solidão que sobressai aos olhos dela. Espectadora.
"Se queres evoluir, terás de caminhar por ti. Sem ajudas."
Entretanto, em jeito de teatro experimental, uma personagem secundária sai de cena, inesperadamente. Abandona o palco e só então, com os seus tacões de salto alto a castigarem o soalho de madeira, nos apercebemos da falta que fazia ali. O público troca murmúrios. "Quem era aquela?" "A esperança", responde um chico-esperto, regozijando-se por ter lido o programa de uma ponta à outra.
Até então, a esperança parecia fazer parte do cenário. Ninguém dava por ela, e no entanto a sua presença e os seus diálogos sustentavam corajosamente o espectáculo. Agora que ela é estrategicamente retirada pelo encenador, o público exclama a sua falta. Perguntam-se como conseguiram ignorá-la, desejam que regresse. Insurgem-se em silêncio, irritados por não ter sido o medo a ser apagado de cena.
Como um monstro que toma forma a partir das emoções do público, surge uma nova personagem. O desespero. Dualidade de todas as coisas que existem, desespero e esperança não se misturam, não aparecem  juntas em cena. Não se sabe quem é o yin e quem é o yang - sabe-se que representam forças fundamentais opostas.
É espantoso, no entanto, que o encenador não tenha decidido matar a esperança. O que significa que, até ao fim do espectáculo, o público pode sonhar com o seu regresso. Tal como o desespero se esculpiu a partir dos seus receios, também ela pode ser recriada a partir dos seus sonhos. E isso é, curiosamente, a própria da esperança.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aluga-se cantinho onde poder chorar

Longe do mundo... mas perto de ti!

E hoje é só.