As asas que eram minhas

Sentava-me na praia. Todas as tardes. Achei sempre, na minha humildade entrecortada, que só aquele pedacinho de praia me dizia respeito.
Calcorreava os habituais quilómetros até à praia, parte pelos montes, e o resto pelo paredão. Corria numa parte do percurso, de música em jeito de parada militar. O que me fazia correr sempre, todos os dias, era a imagem da minha praia ao fundo.
Por esse bocadinho de mim eu ansiava, e por ele me esforçava. Era o bocadinho do dia em que estava sozinha. Sem problemas de outrém às costas. Sem preocupações, sem outras vozes nem tudos ou nadas. Só eu.
Chegava suada, exausta. Mas com um sorriso. Sentava-me sempre na mesma duna, como se de lugar marcado se tratasse. Com o mesmo rigor que distingue a cadeira M-12 da M-13. Sempre no mesmo lugar.
Um ritual, imaginam.
A música aqui já não interessava. Procurava só o som do mar. Da minha solidão a acompanhá-lo, como um tambor que fica ao fundo. A cabeça esgotava-se de pensamentos, muitas vezes tendo que me obrigar a isso.
Era este o meu pedaço de céu. Ficar a ver o pôr-do-sol, tantas vezes encoberto ou chuvoso, e como tal, ilusório. Mas eu ficava lá, a olhar para a linha do horizonte. Contemplando. Limitando-me a isso, sentindo-o como o "tudo" da minha vida. Aquele momento do dia, da natureza comigo, era a minha calma, o meu torpor, a minha paz. Onde eu podia sonhar.

Até que alguém me desafiou. E se fosses até lá? Sentir o vento na cara, sobre o mar. Tocar nessas cores que se esparramam pelo céu, até sobrarem apenas migalhas laranja de sol. Banhares-te nessas ondas que imaginas quentes, lá bem ao fundo.
Devo ter corado e tudo. Eu, capaz de chegar lá ao fundo?! Eu, a voar até ali? Mas que sentido faria isso? Sei que pensei um milhão de coisas, a mais importante: "eu não seria capaz!" Que vergonha, sequer a hipótese de que eu teria fôlego para atravessar o mar, que as minhas pernas abarcariam tal distância.
Alguém me oferecia asas. E isto deu-me que pensar. A minha ingenuidade chegava ao ponto de acreditar que o vento um dia estaria AINDA mais de feição, para mim? Que deveria esperar?

Foi um olhar. Foi um olhar de confiança, um olhar de quem, não só acreditava em mim, como tinha a certeza que eu iria conseguir. Foi esse o impulso que me fez abrir essas asas, deixando tudo o resto para trás, e dar o salto. Agarrar-me com mãos e dentes e tudo. E tentar...

Foi rápido. Foi num fôlego, tal como eu imaginava. Mas ao mesmo tempo, durou muito. Dura até hoje. Essa sensação de arrepio na pele, quando fazemos algo que nos ultrapassa, que nos enlouquece. Para o qual nascemos, e que não podemos evitar.
A Terra acolheu-me. No esplendor daquele pôr-do-sol a que eu tantas vezes assisti, fundi-me. Enterrei-me. Cheirei-o, abraçei-o. As cores quentes trincaram-me a pele, a luz abalroou-me, recebeu-me. O vento picou-me o cabelo nas costas, horas a fio. Ainda tenho essa sensação.
Foi com espanto que recebi a notícia. As asas não eram emprestadas. Haviam sido, desde sempre, minhas! Alguém me mostrou que eu tinha asas, e podia voar. Mas o sonho, esse, já existia em mim. Bastou levantar a cortina...

Hoje? Não, já não me limito a ficar na praia. Continuo a correr, a contemplar, a sonhar.
Mas agora faço-o a voar. Porque sou capaz.

(inspirada num texto antigo deste espaço)

Comentários

Indio disse…
Simplesmente FENOMENAL!! está mesmo muito bom, cada vez escreves melhor ;)

Não pares e avança para o livro, sou o 1º a comprar :D

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