"Vais-me matar, eu sei..."

Vou a caminhar pelas ruas lisboetas. O frio arrebita as bochechas, e faz andar mais rápido. Encontro uma colega. Quer conversar um bocadinho e então caminhamos juntas. Quer contar-me as últimas novas sobre o seu amor, que tem dias que é desamor, e noutros nem uma coisa nem outra.

Eu vou-a ouvindo como sempre, sentindo-me sempre sintonizada com esta pessoa que, apenas partilhando a minha vida há escassos anos, me faz sempre sentir em casa, desmaquilhando qualquer desconforto com o seu sorriso rasgado.

E de repente ela sai-se com uma frase que me desarma: "Sim, já sei, vais-me matar!!". Fico a olhar para ela surpreendida, porque tal nem me passaria pela cabeça: adoro ouvi-la, e naquele momento só pensava como ela devia estar magoada com a situação.

Mas ao contrário de me ofender ou de me ser indiferente, esta frase acordou-me. E voltaria a acontecer nesse mesmo dia, mais tarde, quando em conversa com uma outra colega, esta me diz logo que me vê, "Pronto, e agora é a parte em que tu me vais matar...". Não pude deixar de me abstrair por segundos, ouvindo a campainha da recordação lá no fundo: "eu já ouvi isto hoje... mas que raio...".

Já no autocarro, depois de tudo isto, ao largar a mala sobre as pernas e aconhegar-me para a viagem, senti que algo me incomodava. Sentia o peito apertado, e corri a desapertar o cinto do casaco. E não é que o aperto continuava, vindo não do casaco, nem da roupa, mas bem cá do fundo?

Que pessoa é esta dentro de mim, que toma conta de quem sou, e com agressividade me mostra como se fosse outra? Sinto-me uma raposa vermelha disfarçada com as peles de uma outra raposa, mais matreira e que se confunde com as folhagens, à espera de atacar...