Dor d'alma

Stella...
procuras por alguém que se faça ouvir, como tu. Tentaram impedir-te de ver o dia, mas tu continuaste a aproximar-te, continuaste a cantar para afastar os males. Encontraste uma verdade que te pode magoar, mas nem por isso te fechaste na tua caixa de música, dançando repetidamente coisa de bailarina movida a corda.
Ficaste à chuva sem procurar abrigo, pensando nas coisas vulgares da vida, que nos podem devolver a esperança.
...

Percorre cada centímetro do carro com o aspersor de água, movimentando-o com uma energia frenética, exagerada. Concentra-se na sujidade, naquilo que pode mudar. Quando a vontade de chorar lhe arrepia as costas ao subir por si acima sem pedir, reprime-a contorcendo-se, e volta a concentrar-se em limpar o carro. Porque a água limpa tudo, não é verdade?
No seu pensamento desordenado, de quem acaba de receber a notícia da doença grave de uma amiga, dá por si a recapitular toda uma vida ao lado dela. Não pode ser. Algo tem de poder fazer.
E a impotência escala por si acima e abaixo repetidamente, abanando-a como um balde de água gelada que não pára de cair. Não parou de olhar para o carro, mas só agora volta a vê-lo. E percorre-o com a espuma, tentando lavar algo da sua alma, que não quer sair.
Dói-lhe o coração, tanto, mas tanto, e essa dor prolonga-se-lhe ao braço, como se fosse muscular, mas lá dentro, tão lá dentro que julga que a alma é física, neste momento. Dói-lhe o coração ao pensar na amiga a sofrer, a desaparecer. Repete na sua cabeça cada palavra, pesando-lhe a dor e o significado. A sua mente é um computador infernal, a obrigar-se a antecipar o pior que está para vir.
Pára por dois segundos para retornar à máquina, colocando-lhe mais dois euros. Como se estivesse pagar para se dar tempo a si mesma para pensar.
Revê o sorriso da amiga a seu lado, a facilidade com que ri um riso de criança, fácil de ler e de gostar. Recorda-lhe o toque macio dos cabelos, e o olhar profundo de menina mulher. Pior: recorda tudo o que de mal lhe disse, as vezes todas em que não teve paciência para ela, em que foi humana, em que a tratou com a sua habitual brusquidão. E o coração dói mais quando percebe que agora faria algo que nunca pensou fazer: voltar atrás.
Dá voltas cegas ao carro, isolada no seu mundo de faz de conta, fazendo da limpeza um escape, algo que pode controlar. Já não há nada para limpar, até as jantes percorreu. Mas corre a colocar o líquido encerador, para proteger o carro das intempéries.
E enquanto dá voltas intermináveis ao carro, cobrindo-o desse líquido protector, caem-lhe as primeiras lágrimas da estação que agora começou, desejando, no fundo da sua alma, que pudesse ser a amiga a estar no lugar daquele maldito carro, para ela poder cuidá-la e protegê-la de tudo o que está para vir.

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