Diário de um espelho partido...

Subiu e desceu uma, outra, e outra vez. Já sem fôlego continuou a calcorrear quilómetros, sem sair do mesmo espaço limitado do seu degrau. Não se permitiu parar para descansar. Enquanto as outras se deixavam cair no chão para recuperar a respiração, ela, já tonta, convencia-se de que o mundo é que estava a andar à roda, não os seus olhos, já desiquilibrados, a queriam fazer parar. Porque nada na sua cabeça lhe dizia que devia parar.
Tinha de continuar, e não parecia difícil, embalada que estava pelo ritmo, imersa naquela jiga-joga que repetia uma e outra vez, como se não pudesse evitá-lo.
E quando por segundos lhe ocorria que não aguentava mais, forçava-se a olhar para instrutora. Instruía-se mentalmente a focar o olhar já turvo naquelas curvas perfeitas, que nem Deus nem os seus pais tinham criado sozinhos. Ela sabia que um corpo tão bonito tinha que ser fruto de muito exercício, e de não comer, claro. Porque só quem não come é que pode ser assim tão perfeito.
Bastava isto para que, num ímpeto, a hesitação de segundos se esfumasse pelo seu corpo, como gotas de fúria e inveja que se evaporavam juntamente com o suor. Continuava a seguir a sua instrutora com exactidão avassaladora, sem parar nem quando ela parava. Recebia cada bafo no seu peito com tamanha revolta, que os seus punhos se cerravam em murros imaginários, e os seus pés se moviam furiosamente contra o chão. Esquecia a fome que lhe engolia o estômago em ondas de dor surda, e a fraqueza das pernas que se alastrava ao corpo todo de cada vez que se mexia. Pensava apenas em emagrecer, em obrigar toda aquela porcaria que tinha dentro de si a sair.
Subitamente, a instrutora parou a música e ordenou que todas fossem beber água. Lutando contra a frustração de ter de parar, Laura dirigiu-se para a sua garrafa de água continuando a marchar, e obrigou-se a bebê-la inteira de uma só vez, provocando vómitos pelo caminho. Sentia-se melhor agora, pensava. Sentia-se purificada. Porque sabia que a água levava tudo, como as lágrimas, e assim tudo iria embora mais depressa.
A música recomeçou, e o seu coração pareceu rebater-se contra a ideia. Começou a sentir um calor inexplicável, e achou que, estando a sala apenas com três pessoas, não faria mal se tirasse a camisola e ficasse só de top. A instrutora olhava para ela com os olhos esbugalhados enquanto ela recomeçava a coreografia sozinha, e Laura parou, pela primeira vez em duas horas, para olhar para ela. Não conseguia evitar de lhe ter uma raiva enorme, embora soubesse que não tinha nada a haver com a comparação que o seu namorado tinha feito um mês antes em relação às duas: 'finalmente fazes algum desporto, estava a ver que não! assim pode ser que chegues pelo menos aos calcanhares da Sofia, se bem que gorda nunca vais deixar de ser!'. A gargalhada que se seguiu àquele comentário, juntamente com a sua expressão jocosa, era o combustível que alimentava Laura, desde então, para as suas jornadas de emagrecimento. Deixara de comer duas semanas antes - só por vezes assaltava o frigorífico durante a noite, comendo tudo o que via, na crença de que o sentido crítico da dieta estava a dormir... e em seguida vomitava tudo, sem conseguir evitá-lo, mas sentindo-se contente por saber que a porcaria não ficava lá dentro. E o exercício - todos os dias, desde há um mês, que fazia exercício durante várias horas, sem parar.
'Porque é que está a olhar?', resmungou.
'Estava a reparar', balbuciou Sofia, 'que estás terrivelmente mais magra.'
Nesse momento, as lágrimas de Laura afogaram-lhe a vista. Não viu mais nada, enquanto uma dor surda lhe apanhou o peito e a atirou para o chão, sem mais pensamentos. Nesse momento, agarrou-se apenas a uma coisa: tinha conseguido. Um mês depois, o riso do Daniel tinha parado de ecoar... na sua cabeça.

Comentários

Anónimo disse…
tão bem retratado! lamento é q os risos não parem de ecoar assim...porque mesmo com um comentario daqueles o riso ja esta tao incorporado, tal como a imagem corporal ja esta tao distorcida!!! :(
Anónimo disse…
voltei :)

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