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Caixas vazias.

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Há dias em que podíamos ser caixas vazias. Todos nós temos dias sem interior, sem presença. Mas outros dias há, em que a caixa está cheia. Diferentes objectos se nos revelam e nos preenchem, de formas diferentes e bonitas. E o que nos leva lá, a cada um de nós, é a nossa capacidade tola de continuar a sonhar. A minha ponte? O meu objecto? O amor. Sim, ainda acredito. Ainda vejo, numa linha mais lá ao fundo, a minha mão suportada por outra, forte, constante. Oiço uma gargalhada sobre a minha, dando força uma à outra, mutuamente.  A par de todas as imperfeições, de todas as resmunguices, a minha mão estende-se para a sua face, lembrando-se da ternura nas horas mais imprevisíveis. A minha voz desafinada enche a sala, e há alguém que me ouve sorrindo. Com isso sentindo-se confortado. O meu coração enche-se ao ser surpreendida com um beijo. Quando acordo sabendo que um abraço é o meu lugar seguro, em dias de chuva, de poeira, de assim-assim. Muito disto não será como imaginei. ...

Sentada no telhado.

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Soube logo que só ia saber fazer isto. Desde o primeiro caderno que me foi oferecido, há tantos, tantos anos. Nunca lhe encontrei melhor propósito do que para empilhar letras. Excepto, claro, quando perdia a paciência para procurar as palavras certas para os tumultos em questão (era uma jovem adolescente). Nestes casos, acabava rabiscando as minhas desarrumações nas margens, para deixar sair a pressão para qualquer lado. Na altura, quase só me saíam poemas de amor - maus, lamechas, desajeitados como tudo. Eram as histórias que eu tinha para contar. Lembro-me desse caderno como se estivesse à minha frente, e até ver ainda o guardo; azul escuro, de papel reciclado, com um buraco na capa onde desenhei, vá-se lá saber porquê, um pé (que só eu sei dizer que é um pé, e apenas porque fui eu que o desenhei). Escrever era, já na altura, como sentar-me num telhado. E deixar o olhar perder-se, até que encontrasse algo em que valesse a pena prender-se. Ora aí está. Antes disso já escrev...

No lugar.

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É isso. Só isso. Agarra-te com força ao que te inquieta - mãos arqueadas, braços seguros. Ocupa-te de saber o que te move, o que te faz borbulhar. Assegura-te de que cada músculo conhece o seu lugar, e mantém um sorriso na cara. Entrega-te ao momento. Quando for hora de saltar, empurra o chão com toda a força. E se puderes, guarda alguma delicadeza dentro de ti. Não te deixes partir pela força que te pede o salto. Os nossos movimentos só ganham em elegância e beleza. Fotografia: Caroline Pav

Vai e beija o mar por mim

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Ela foi e pediu-lhe. "Beija o mar por mim." Nunca mais poderia voltar ao mar. Não àquele; não àquela praia. Que tristeza tamanha. Deparava-se com uma imensidão de nada, de vazio. No peito gritava uma sensação de injustiça. Não poder tornar a uma casa onde se foi tão feliz. Onde nos redescobrimos, onde fizemos outros felizes. Como quem fez algo de errado. A frustração de saber como é raro sentir assim. Aqueles instantes que queremos agarrar para nunca largar, "é isto mesmo", "estou no sítio certo", "quem me dera que nunca acabasse". E depois ter de largar tudo; pegar fogo ao que se construiu, ao que se foi; ter de fugir e começar de novo. Um dia houve medo. Medo de nunca mais conseguir ordenar aos dedos que se juntassem em equipa para escrever. Por momentos pareciam ter deixado de lhe dar ouvidos. Medo de ser agora irremediavelmente incompleta. Medo do seu coração, que enfim revele ter passado a ser de pedra; sem sonhos, sem calor, apen...

Fio.

São duas almas, nada mais. Quando a noite chega e abraça tudo, mantendo-se apenas longe do calor dos candeeiros de rua, eles são só mais duas figuras, dois semblantes de uma espécie que existe em demasia. Da qual não deveria existir tanto espécime, digamos assim.  E mesmo se decidirmos aproximar-nos para ver mais de perto, não descobrimos à partida nada de extraordinário. Não são muito grandes nem adoravelmente pequenos; não brilham, não têm nenhuma característica que os coloque ao nível do extraordinário. Mas algo no meio deles brilha. Um fio invisível que os une, esticando-se e encolhendo-se, mas nunca quebrando. Um fio de luz que atravessa paredes e distâncias, uma ternura capaz de aguentar dias sem comer. Um sorriso que se distingue dos outros todos. Como duas mãos que se dão sem se darem, não fisicamente; duas mentes ligadas ao nível do extraordinário. Duas almas que apagam a palavra fim e colocam um infinito, ou pelo menos um enorme ponto de interrogação, ao final da...

Reflexões do caos

Há um enlouquecimento puro nos dias. Repararam? Corremos da cama para o trabalho; só paramos para nos olharmos ao espelho de forma a garantir que não estamos ridículos (com alguma madeixa de cabelo no ar, com um olho borrado de maquilhagem), em vez de ser para nos apreciarmos e cuidarmos de nós. Engolimos um café a ferver pela goela abaixo para garantir que as poucas horas de sono que nos permitimos nos darão a tolerância suficiente para a quantidade de absurdos que teremos de enfrentar ao longo do dia. Vociferamos nos nossos carros, com os outros condutores; irritamo-nos com quem está a fazer o mesmo que nós faremos uns metros à frente. Bufamos, dizemos asneiras, ou simplesmente ficamos tensos. Caminhamos todos, qual rebanho, na mesma direcção - cada um em seu carro, a gastar o seu próprio combustível. Se procuramos alternativas de transporte, somos frequentemente lixados com f* grande - ou porque não compensa em termos de preço, ou em termos de tempo, ou porque simplesmente nã...

Birra.

O som lá para baixo deve estar uma loucura, dizia a boca à cabeça. Referia-se ao salão onde estava o coração. Aqui por cima tudo bem, continuava a boca. E no entanto falava sussurrando, com medo de provocar dores à cabeça. Porque tudo se trata de diplomacias, por vezes até de paninhos quentes; porque em certos dias não se resolvem os medos, só se seguram, com as pontas dos dedos. Como quem diz, mal e porcamente. E o coração é o primeiro a sentir tudo - o primeiro a reagir, a pôr os pés à parede. Literalmente pontapeando as paredes da caixa, como um bebé muito crescido para a barriga da mãe. E quando isso acontece, há que escolher boa música, pôr o banho a correr, ferver água para o chá, escolher a roupa mais confortável e com mais paciência nos bolsos. E não ter pressa, não ter barulho, não ter nada. Decidir não ter absolutamente nada, a não ser tolerância para com a birra de dentro. Que há de passar. Ah pois vai.