Sentada no telhado.


Soube logo que só ia saber fazer isto. Desde o primeiro caderno que me foi oferecido, há tantos, tantos anos. Nunca lhe encontrei melhor propósito do que para empilhar letras. Excepto, claro, quando perdia a paciência para procurar as palavras certas para os tumultos em questão (era uma jovem adolescente). Nestes casos, acabava rabiscando as minhas desarrumações nas margens, para deixar sair a pressão para qualquer lado. Na altura, quase só me saíam poemas de amor - maus, lamechas, desajeitados como tudo. Eram as histórias que eu tinha para contar.

Lembro-me desse caderno como se estivesse à minha frente, e até ver ainda o guardo; azul escuro, de papel reciclado, com um buraco na capa onde desenhei, vá-se lá saber porquê, um pé (que só eu sei dizer que é um pé, e apenas porque fui eu que o desenhei).

Escrever era, já na altura, como sentar-me num telhado.
E deixar o olhar perder-se, até que encontrasse algo em que valesse a pena prender-se. Ora aí está.

Antes disso já escrevia cartas, notas de amor; empregava palavras que os da minha idade não conheciam, e das quais portanto zombavam. E eu, acanhada como um grilo, lá me deixei fascinar pela ignorância e deixei de cantarolar, reservando a minha voz para a solidão. Talvez quase a tenha perdido, ou deixado enferrujar. Mas não calhou, ela cair; calhou apenas mudar e crescer, e portanto aqui está ela - cada dia mais ela. Ou mais eu, ou mais qualquer coisa.

Os telhados onde me sento hoje para escrever são outros. São maiores, mais altos; lá chegam sabores, cheiros e visões que vou coleccionando na minha cabeça. Deixo que fervilhem, se componham, enquanto fumo um cigarro - agora já posso; já tenho idade e paciência para isso.

De vez em quando tenho sorte, e o meu olhar consegue alcançar uma janela - e aí, não tenho vergonha de o dizer, espreito lascivamente. Capturo tudo o que posso com a certeza de uma câmara fotográfica e ali fico, encantada, até ao momento em que a luz desiste e se apaga (ela desiste sempre antes de mim). A desilusão só dura uns segundos. Depois vem o silêncio, e devagar começa o burburinho interior. São as peças a juntar-se; é a minha imaginação, são os meus pós e luzes a colar tudo.

Porra, como eu me sinto quando escrevo! (é talvez como entrar no Templo da Sagrada Família pela primeira vez... mas uma e outra vez)
É a consagração de todos os lamentos, de toda a trapalhada, de toda e cada hora sobejante daquelas em que estou a escrever.

É, em boa verdade, a única razão por que preciso desesperadamente de mim. Para partir estes calhaus todos; para os deixar rolar (e se eu os faço rolar...!), até serem seixos redondos, macios, únicos. Neles estão contidas todas as histórias que me passam ao lado, à frente e por dentro. Por elas, pelas histórias, existo. E nelas continua a existir o melhor do que há em mim - como uma estrela cuja luz ainda é visível na Terra, muitos anos depois de se ter apagado.

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